quarta-feira, 8 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (iii)

29 de Dezembro de 2006


No jipe, os três, eu, a S. e o T., com os nossos pensamentos já a meio do Mediterrâneo, preparávamo-nos para fechar os olhos e tentar descansar. A S. no banco de trás, ao comprido, toda atafulhada de roupa e o casaco extra quente do T., ele a desembrulhar uma folha de um material qualquer dourado na frente e prateado no verso, ou vice-versa, última novidade e topo de gama de mantas para o ar livre, que lhe dava um ar de tublerone gigante. Qualquer movimento resfolhava a “manta” ou o raio do que aquilo era e já nos ríamos por tudo e por nada, sem qualquer droga fumada ou inalada (na verdade nenhum de nós se droga, não sentimos necessidade porque realmente não precisamos, conseguimos chegar aos mesmos estados de alucinação, desvario, dormência, sem ingerir nada, é quase a mesma coisa como dizia Henry Miller, “embebedarmo-nos com água pura”, por isso não esperem um relato de viagem beatnik). Enquanto eles se preparavam, eu saí do jipe para fumar um cigarro e começar a anotar esta viagem que tínhamos começado há mais de doze horas. Lá fora, sentado num degrau de um minúsculo passeio, a fumar o cigarro, já conseguia ver Sebta do outro lado, algumas luzes pelo menos, e todo o Mediterrâneo afogando as estrelas que ligam a Europa à África. Foi ali, no outro lado deste mar, que Paul Bowles escreveu os seus romances e contos, foi naquele continente que Rimbaud se matou, se Fès outro Rimbaud, que Almada Negreiros nasceu com aqueles grandes olhos, que Nâzim Hikmet esteve preso e escreveu os seus poemas e peças, que Jean Genet amou e suicidou o seu funâmbulo, o seu Abdullah, que o Malangatana pinta, que o Herberto Helder escreveu, e outros, como o meu pai que apenas nasceu lá e viveu até aos nove anos, lá mais para baixo em Luanda em mil novecentos e quarenta e oito. Acabado o cigarro voltei para o jipe e também eu me enrolei em casacos e me descalcei. Era tempo de fechar os olhos, tentar dormir até às quatro e meia da manhã, tentar descansar. Mas não podíamos descansar por aí além, porque a qualquer momento era preciso colocarmo-nos na fila em frente da cancela de segurança, o que aconteceu por volta das duas horas da manhã.
Assim do nada, um carro arranca vindo sabe-se lá donde, passa em frente de muitos outros que já lá estavam há horas, antes mesmo de nós chegarmos, e coloca-se muito muito perto da cancela. O T., que já se encontrava de sobreaviso, porque sabia que a entrada para o barco era um corre-corre a ver se te avias, um quem chegar chegou, um quem foi ao ar perdeu o lugar, num só gesto desembrulha-se da sua prata, do seu invólucro de chocolate, liga o jipe e arranca em direcção à cancela. Lá ao fundo alguém grita, eh qué estás haciendo? alguém lá do fundo corre em nossa direcção, qué estás haciendo hombre? Um carocho, um moedinhas espanhol abeira-se da nossa janela, da janela do T. e diz-lhe que ele, T., não pode fazer aquilo. Ora, o T. sem meias medidas, dando uso do seu melhor espanhol diz ao carocho que ele já lá estava há mais tempo que aquele outro tio, assim como muitas outras famílias. O carochito pergunta-lhe então se nós fizemos reserva para termos lugar no barco. Nós não sabíamos da necessidade de fazer qualquer reserva. O tipo pede os nossos bilhetes para dar uma olhadela e o T. dá-lhos para as mãos crispadas pelo sol, aquelas mãos amarelas e envelhecidas, com muito sarro e porcaria debaixo das unhas, drogadas. Diz-nos ele, depois de ter verificado que realmente tínhamos bilhete para aquela hora, para o primeiro barco, que é mesmo necessário fazer a reserva porque aquele fim-de-semana, para além de ser o da passagem de ano, coincidia com uma data festiva muçulmana e muitos árabes já tinham marcado viagem para aquele dia. Devolve-nos os bilhetes e nós já pensávamos que não iríamos para lá do Mediterrâneo. Entre palavras e um cigarro cravado pede de volta os bilhetes e diz que vai ver o que se pode fazer, vira costas com os nossos bilhetes e parte em direcção da gare, pelo menos era o que parecia. Mau, pensámos em conjunto olhando-nos em silêncio, já vamos ficar sem bilhetes (pode parecer preconceituoso, mas àquela hora, quase sem dormir, a capacidade de raciocinar claramente em modo de descanso e sem perceber patavina do que é que se está a passar, desconfiamos de tudo). O T. sai do jipe a correr atrás dele, enquanto eu e a S. ficamos lá dentro a ver como dois espectadores surpreendidos por aquele filme de última sessão. Minutos depois aparece o T. com o carocho e os nossos bilhetes, dá-lhe mais um cigarro, troca mais umas palavras e segue para o jipe. Está tudo tratado, diz-nos ele, parece que os negócios já começaram enquanto dormíamos. Aquele gajo que estacionou o carro Fès um acordo qualquer com um marroquino para se pôr à frente, mas agora consegui o lugar da frente, vamos ser os primeiros a passar a cancela. Mas como é que isso aconteceu? pergunta a S.; eh pá, o gajo disse-me que deu vinte euros a um outro gajo e conseguiu-nos a reserva e o lugar da frente, depois pediu-me mais cinco euros para comer e eu dei-lhos; perdemos então vinte e cinco euros? diz a S.; espera, eu vou tentar reaver os vinte euros, aquilo de certeza que foi só tramóia, diz o T. enquanto saía do jipe para o ir procurar, apertar com ele e reaver os vinte euros. Mas, claro, carochito nem vê-lo. Deixa lá, estamos na frente e agora podemos descansar mais um pouco. Assim, sem mais nem menos, já uns quantos carros começaram a estacionar atrás de nós a fazer bicha para partir, se houvesse problemas estávamos completamente presos e não conseguiríamos sair dali. Única direcção: em frente, sempre em frente até ao Ramón Lull. Dormir dormir, só eu consegui entre o barulho de conversas, sirenes e buzinas que começaram por volta das quatro e um quarto, quando apareceu o guarda que iria, depois de apresentados os bilhetes, dar a passagem.

(cont.)

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