segunda-feira, 6 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (i)

Não esperes, aliás, que eu te vá contar tudo, tintim por tintim. Sentir-me-ia muito pobre, se não calasse qualquer coisa”.

Robert Walser, A Rosa

No fim de contas, nos momentos grandiosos também assomam os pormenores ridículos

Enrique Vila-Matas, Longe de Veracruz


You were right about the end, it didn’t make a difference. Everything I can remember, I remember wrong

The National, Alligator



Para a S. e o T., companheiros de viagem.
Para aqueles a quem convidámos e não puderam vir connosco
E para o Gaspar que nasceu durante a viagem


28 de Dezembro de 2006


Começámos cruzando o campo. Partimos pela planície pouco seca e já esverdecendo. De quando em quando, em cada lado cortado pela estrada, pululam flores brancas, como se a neve tivesse voltado a cair, uma vez mais, exactamente como há um ano, pouco mais ou menos. Despedimo-nos dos gatos: adeus Djamila, adeus Manchu, Mário e Maria Branquelas, Teresa Tigresa e Alfa, têm aqui a comida (quatro quilos despejados em diferentes tigelas e tupperwares) e água que sobeja para os seis. Deixámos a casa para que tomem conta. Dormem todos enroscados nos sofás de cambalhota que estão no pátio, ou no telhado quando o sol bate de chapa, por entre os ramos da única árvore. Por não ser botânico não lhe sei o nome. É a árvore, nada mais. A árvore.
Pelo caminho, perfurando o Alentejo, apenas as oliveiras e os sobreiros se mantém verdes, o resto está seco, partido, quebrado, caído. Viajamos, mas viajamos com destino certo. Temos mapa até Espanha, temos comida e água como os gatos, mochilas, roupa, um Land Rover e os olhos presos em Marrocos. A última vez que lá estive foi em dois mil e quatro, o que mudou? Pergunto-me muitas vezes isso, enquanto olho pela janela ao longo da paisagem. Logo saberei. Talvez nada, talvez um pouco mais que nada.
É necessário fazermos umas paragens, esticar as pernas, desentorpecer os músculos. A primeira foi em Beja, para comermos e levantarmos dinheiro. Levámos pelo menos duas horas a sair de lá, embora nunca tenha olhado realmente para o relógio até passarmos a fronteira ibérica e acertar a hora. Dou uma hora a mais ao relógio, uma hora em poucos segundos, que a volto a ganhar quando chegar a Sebta ou Ceuta como quiserem (mas na verdade andámos sempre com uma hora a mais, não sabíamos que Marrocos tinha o mesmo fuso horário que nós). De Beja seguimos caminho, pela estrada nacional, para a raia alentejana. Primeira terriola do lado de lá, Rosal de la frontera, e a noite começa a cair. Vamos percorrendo parte do sul de Espanha. Atravessamos Aracena, Sevilla, Las Pajanosas e dirigimo-nos para Cádiz e mais tarde Algeciras.
Nesta cidade, a última antes de atravessarmos o Mediterrâneo, encontramos já traços da cultura muçulmana, não muitos, é claro, apenas nomes de lojas, restaurantes, bares. Percorremos a cidade a toda a pressa, porque sabíamos que o último barco para Ceuta partia às dez horas da noite, faltavam mais ou menos vinte minutos para a largada marítima. Um porto enorme, atolado de carros e grandes leviatãs de aço com a barriga cheia de máquinas motorizadas estacionadas. Mal entrámos no parque de estacionamento um marroquino indica-nos um lugar, donde desean ir? Para Ceuta (com o comum sotaque português a tentar falar espanhol), ay un barco a salir ahora, vengan conmigo (pode não ter sido exactamente isto o que ele disse, mas o que interessa?). Lá fomos atrás dele para dentro da gare, em direcção a um posto de vendas de bilhetes tanto para Sebta como para Tânger. Não teríamos os bilhetes com a pressa que desejávamos, uma vez que a sala estava cheia de pessoas que iriam também para Marrocos e apenas dois funcionários, um dos quais contava euros e dhirames, por isso apenas um a atender. Aquilo demorava. Árabe para aqui, árabe para ali, passaportes, notas a serem passadas de mão em mão, um homem que não dá o dinheiro certo, tenta ainda regatear mas nada feito, toma lá dá cá e chega a nossa vez. Três bilhetes de ida e volta para Sebta (Ceuta) mais um jipe, quatrocentos e tal euros e mais ou menos cinco minutos para entrarmos no barco. Vai ser à risca, pensávamos nós entre sorrisos já nervosos pela proximidade da nova terra. Quando tivemos os bilhetes nas nossas mãos corremos dali para fora para o jipe e ala (Allah) que se faz tarde. A saída era para ali quase quase atrás de nós, mas aquele era um porto difícil de se navegar, um tanto quanto labiríntico, que nem os funcionários sabiam que voltas teríamos de dar para a porta de saída. Depois de algumas perguntas e respostas de um espanhol sopinhas de massa, que não percebemos rigorosamente nada e por pouco nos desatámos a rir na sua cara, lá demos com o caminho para Ceuta, ténen de ir para allá; pero para allá es Tánger y nosotros queremos ir para Ceuta; por favor siguen para allá, até que percebemos que os nossos bilhetes indicavam Tânger e não Ceuta. Não podíamos acreditar naquilo, acabámos por perder o último barco da noite, mas talvez houvesse esperança de ainda embarcarmos, podia ser que ele se atrasasse. Voltámos para a agência de viagens e dissemos que se tinham enganado e pedimos para nos trocarem os bilhetes. Ao princípio torceram um pouco o nariz, mas lá os trocaram desculpando-se e fazendo um pequeno desconto (ou os bilhetes para Sebta eram mais baratos do que para Tânger, o que ainda não percebi). Recebemos cento e poucos euros de volta e uma espera até às cinco e meia da manhã para o barco Ramón Lull.

(continua)

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