quinta-feira, 19 de maio de 2011

Paul Auster




Autor: Paul Auster
Título: No país das últimas coisas
Editora: Edições Asa
Tradução: José Vieira de Lima


Não é incomum, quando confrontados diariamente com certos acontecimentos – como as catástrofes naturais, as guerras, as epidemias, os desastres devidos ao erro humano, etc. –, que o nosso pensamento se desvie e volteie sobre o fim dos tempos, tanto mais quanto as raízes da cultura ocidental desde cedo se fincaram num solo teórico repleto de quedas, falências da carne e elevações de espíritos, violências de momentos críticos; nós, ocidentais, somos por natureza teleológicos. Marcamos a ferro, quase sempre, dois pontos-chave, o princípio, ou a origem, e o fim. O primeiro, que se crê de várias formas, uma vez tendo-se dado cedo se desconhece, se esqueceu, constantemente se procura, lançadeira de tear; o segundo, esse, como que se projecta em duas direcções, uma sagrada e outra profana, divina e natural, uma escrita, inscrita na nossa vida, como que pessoal, a outra coincidindo com a origem, partilhando o mesmo tempo e por isso ainda mais incerta que a morte “pessoal”. A essa dá-se o nome de Apocalipse e significa nada menos que – e daí, talvez, todo o terror – Revelação.
“No país das últimas coisas”, do norte-americano Paul Auster (1947) – autor pouco amado e lido nos Estados Unidos, mas agraciado por todo o resto do mundo, já com uma longa obra em várias áreas, do romance à tradução, do argumento cinematográfico à realização – livro editado em 1987 (demorou 23 anos para ser traduzido em Portugal), coetâneo dessa estratégica guerra de terror nuclear e porventura razão do teor do seu tema, projecta-nos para um tempo em que alguma coisa terrível já aconteceu – o quê não se sabe. A história é contada por uma jovem rapariga, Anna Blume – será a mesma, enquanto outra, Anna Blume de Kurt Schwitters? – através de uma longa carta dirigida a alguém e a ser entregue a seus pais. Enquanto jornalista o seu irmão foi enviado a uma terra para fazer uma reportagem, porém tendo este desaparecido, como igualmente um segundo repórter que o iria procurar, Anna Blume parte em busca de ambos. É, já, no total desespero que decide escrever, relatar a sua angustiante viagem por uma terra desconhecida, devastada.
Anna Blume será como que um botão de flor (blume) pleno de esperança no meio da desgraça; as pessoas que conhece agarram-se-lhe e, no entanto, como ela é frágil, jovem, estrangeira e estranha a toda a vivência dessa terra. O mundo apocalíptico mostra-se por fim. A destruição, a decadência, o lixo que pulula, que cobre as ruas e as casas, são só a superfície empoada; o terrífico é outro, o que se revela é bem pior: o homem no mais baixo grau da sua humanidade, que ética e moralmente se encontra muito aquém do animal (e não terá sido sempre assim?). Aqui grassa a fome, a sede, a desconfiança, a incerteza, o roubo, o estupro. A vida reduz-se a um combate onde ecoa ainda uma outra vida, uma outra história, que se tenta suster, recuperar, mas já nada pode de tão vazia, tão sem sentido. Paul Auster apropria-se de certos traços comportamentais, actos, gestos e explora-os sobremaneira, ao ponto de descobrirmos nesta ficção partes do nosso mundo actual ampliados a um microscópio. É difícil não reconhecer, aqui e ali, em certas personagens, ou grupos de pessoas, em certas estranhas actividades que o autor descreve, o absurdo de tantas outras do nosso mundo “real”.
Assim, talvez, o Apocalipse não será nunca a destruição mas bem a mostração, a permanência do mais malévolo e benévolo, elevados ao seu grau mais intenso, em constante mistura até se confundirem, a anulação de toda a história subjugada à luta do instante, ao “a cada momento” a ser conquistado para haver outro a seguir, para que haja um que se lhe segue. Revelando-se o homem, despido do que talvez seja uma humanidade e, todavia, sem poder deixar de ser homem, o que resta? Recriar-se, falhar, cair melhor.

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