quinta-feira, 3 de março de 2011

arkaneftá (1)



pela janela consigo ver a noite a refazer uma frescura húmida. o gato coxo, pata como uma escavadora na horizontal, deita-se à lua no umbral da janela cheirando o ar. no papel, um homem e uma mulher. estes são os arquitectos - disse para mim acendendo um cigarro concentrando-me mais na chama que nascia do isqueiro do que no cigarro em si começando a pegar fogo - aqueles que vão morrer - morre a chama tão rápida como nasce, menos nos campos, nas matas, nos pinhais.
alguém viera do mar até uma baía fria ainda com o inverno na boca dos cães, arfando de esforço, passando as mãos enrugadas pelos braços, pelas pernas semi-arqueadas, fraquejantes - mas desta baía, que talvez não exista, crescem os muros, os urros, os rios (murmúrios) e uivos da cidade para a qual se deslocam. espalham-se pela vista turva retratos, carcaças de baleeiros, carros incendiados, o cheiro de borracha queimada penetrando as narinas, os segredos, de todas as coisas mortas, escondidos entre as rochas - o homem e a mulher, os dois de gatas arrastam-se, deitam-se numa duna de alcatrão. são um único grito ainda por nascer entre os ovos dos pássaros marinhos.

em sussurro
- eu não sei como dizer-te, mesmo sem ideias, que cem ideias: a criança - a água - o fogo - o deus - os homens - o leite - a mão: nos surgirão a seu tempo; e em cada minuto a criatura que escreve, com a suave loucura das uvas num copo levemente lascado, sobre o mundo numa página e a esteira, abre a sua mão entre as suas coxas - o homem põe a sua mão na coxa da mulher - e adormece.
ela boceja. é o sono que surge de repente pelas narinas. ela trinca a noite e ele passa a sua mão pela face da mulher - eu passo a minha pela tua - velando-lhe a água que marulha nos dedos dos pés. a maré sobe até aos calcanhares. sobe a morte da primeira noite com o sol subindo pelos dedos, tocando-os de leve num murmúrio. navega o sangue pelos dedos dormentes e o cheiro da terra entra sem esforço pelos pulmões.

em silêncio
- quando olho descarado para a tua tez, para os teus olhos de azul ainda por vir na espuma do mar revolto, a minha memória perde-se nessa espuma no canto da tua boca babada. pareces-me tão inocente, mais inocente que a verticalidade lenta das árvores depois dos túneis das estradas mais vastas por onde passámos. (a tua baba escorre devagar, calma, num estilo de prata livre banhando os teus lábios como uma peça de arte preciosa).

(...)

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