quinta-feira, 17 de março de 2011

O FIM DO FIM DO MUNDO

Dado que há cada vez maior número de escritores, os poucos leitores que ainda havia no mundo vão mudar de ofício e passar a escrever. os países serão dos escribas e das fábricas de papel e tinta, os escribas escrevendo de dia, as máquinas imprimindo de noite o trabalho dos escribas. As bibliotecas não caberão dentro das casas, e então os municípios decidirão (o que já acontece) sacrificar os terrenos dos parques infantis para ampliar as bibliotecas. Seguem-se os teatros, as maternidades, os matadouros, os restaurantes, os hospitais. Os pobres aproveitam os livros como tijolos, põem-lhes cimento e fazem paredes de livros. Então acontece que os livros extravasam das cidades para os campos, esmagam o trigo e os girassóis, dificilmente consegue a direcção de viação manter as estradas limpas entre dois altíssimos muros de livros. De vez em quando cai um muro e há espantosas catástrofes automobilísticas. Os escribas trabalham incansavelmente, porque a humanidade respeita as vocações, e as coisas impressas chegam já à beira-mar. O presidente da república telefona aos presidentes das repúblicas e inteligentemente propõe que se deite ao mar o excedente dos livros, o que é cumprido em todas as costas do mundo, simultaneamente. Os escribas da Sibéria vêem os seus impressos atirados ao mar glacial, os da Indonésia etcétera. Isso permite aos escribas aumentar a sua produção, porque em terra volta a haver espaço para armazenar os seus livros. Não pensam que o mar tem fundo e que no fundo do mar os impressos se começam a amontoar, primeiro sob forma de pasta aglutinante, depois como pasta consolidante e por fim como um pavimento que acabará por chegar à superfície. Então as águas invadirão as terras, vai haver uma nova distribuição de continentes e oceanos, presidentes de diversas repúblicas são substituídos por lagos e penínsulas, presidentes de outras repúblicas vêem imensos territórios oferecer-se às suas ambições etcétera. A água do mar, posta com tanta violência a expandir-se, evapora-se mais do que dantes, ou então procura repouso misturada com os impressos formando uma pasta aglutinante, ao ponto de os capitães dos barcos de longo curso notarem que avançam lentamente, de trinta nós passam para vinte, para quinze, os motores vão abaixo, as hélices entortam-se. Por fim, todos os barcos ficam parados em variadíssimos pontos dos mares, encalhados no papel, e os escribas do mundo inteiro escrevem milhares de folhas a explicar o fenómeno, cheios de alegria. Os presidentes e os capitães resolvem transformar os barcos em ilhas e casinos, o público vai a pé, por sobre mares de cartão, às ilhas e casinos onde orquestras atípicas e folclóricas anima o ambiente climatizado e onde se crescem muralhas de impressos, nascem montanhas de folhas à beira dos antigos mares. Os escribas apercebem-se que as fábricas de papel e tinta vão estoirar e escrevem com uma letra cada vez mais pequenina, aproveitando os recantos mais recônditos de cada folha. Quando a tinta acaba, escrevem com lápis, etc.; começa a espalhar-se o costume de intercalar um texto noutro, para aproveitar as entrelinhas, ou de apagar as letras com lâminas de barbear para voltar a usar o papel. Trabalham os escribas lentamente, mas o seu número é tão grande que as folhas já separam por completo as terras dos leitos dos antigos mares. Em terra vive a raça dos escribas, precariamente, condenada a extinguir-se, e no mar estão as ilhas e os casinos, ou seja, os transatlânticos onde os presidentes das repúblicas procuram refúgio e onde se dão grandes festas e se trocam mensagens de ilha para ilha, de presidente para presidente, de capitão para capitão.

in Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e de Famas, Lisboa, Editorial Estampa, col. Ficções, trad. Alfacinha da Silva, 1999, 2ª edição (1973): 68-70.

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