Primeiro tiveste que escolher a madeira, cortar, aplainar, pregar as tábuas. Primeiro o caixão.
Mais tarde, um pouco mais tarde, incorporas-te no cortejo.
Chegado ao cemitério, já ofegante, vais ter que abrir a cova.
E és tu ainda, quem mais havia de ser, quem desce o caixão, nele já deitado. Irrepreensivelmente imóvel.
(Porquê? Porque é assim mesmo: há paradoxos de quem nem um morto se livra.)
Sozinho fazes toda a festa, se assim pode dizer-se. Sozinho, o cerimonial e a despesa. A última burocracia, a da morte.
Família, acompanhantes, mirones, «voyeurs» da desgraça - não existem.
Tens que ser tu a lançar à cova, sobre o caixão, um punhado de terra. Ashes to ashes, dust to dust. Seja bem cavo o som da terra a bater na madeira.
E não esqueças também as flores prévias.
Tu, porque os outros existem - sim, existem - mas não estão lá.
Tens que ser tu a verter as lágrimas, as únicas lágrimas, afinal.
Tu, não obstante o «merecido repouso» e o «eterno descanso» e toda a gíria restante e consabida.
Por fim a terra em cima, o mais possível, a terra bem acamada.
Tu quem morre. E como se não bastasse, tu ainda gato-pingado, padre e coveiro, parente e amigo.
Tu, único acompanhante, silencioso e solícito. Consternado como é devido.
E finda a cerimónia, tu a teres que sair do cemitério: pelos próprios meios, que remédio. Quase furtivamente.
E em passos vacilantes, inglório, sabe-se lá com que forças, regressar por fim a casa - porque não há mais sítio - e recomeçar tudo.
in Rui Caeiro, Sobre a nossa morte bem muito obrigado, Lisboa, &etc, 1989: 58-59.
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