TESTEMUNHA DE CINZA
Na rocha em que bate o mar
ou na casca seca dessa árvore,
no vento que uiva contra os vidros,
sobre o rasto da areia ou na terra mais dura,
no fumo que se desfaz nas tuas mãos,
escreve, escreve, como se ainda descobrisses as palavras.
Escreve para peles ou pedras,
para brancos cavalos, para aqueles olhos
que nunca para ti olharam e para que nunca tu olhaste.
Escreve sem orgulho, mas também sem falsa modéstia,
que não foi em vão a tua passagem pelo mundo.
Esquece depois tão estúpida frase
e olha o mar, as velas daquele barco
que vem resgatar-te, o seu paciente cabecear sobre as ondas,
as luzes que se reflectem na espuma.
E escreve - sobretudo - quando o vires afundar-se,
quando desaparecer como o sonho ou a bruma,
quando já não existir - sabemos que nunca existiu -
escreve e repete-o em voz alta para o surdo mar, para o céu longínquo.
Aprende assim, testemunha de cinza,
o final implacável do teu ilusório labor,
e então, sem teres dúvidas - que não trema a tua mão -
escreve, escreve, escreve, escreve.
E DE SÚBITO ANOITECE
Ed é subito sera.
SALVATORE QUASIMODO
Viver é ver morrer, envelhecer é isso,
enjoativo, tenaz cheiro da morte,
enquanto repetes, inutilmente, umas palavras,
cascas secas, vidro partido.
Ver morrer aos outros, àqueles,
poucos, a quem verdadeiramente amaste,
desmoronados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
rostos e gestos, imagens queimadas, enrugado papel.
E ver-te morrer a ti também,
remexendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é frágil a matéria
e tudo se sabia e não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluir,
querem perseverar, afirmar o impossível.
Copo vazio, trémulo pulso, cinzeiro sujo,
na luz nublada do entardecer.
Viver é morrer, nada se aprende,
tudo é um desapiedado sentimento,
anos, palavras, peles, despedaçada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve o seu ontem, nada o seu amanhã,
e de súbito anoitece.
in Poemas, trad. e prefácio Joaquim Manuel Magalhães, Lisboa, Relógio d'Água, col. poesias, 2003: 57 e 83
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