Hoje foste embora mais cedo, justamente quando eu o menos esperava. Saíste de debaixo do edredão com o cuidado do costume, destapando apenas a parte que te cabia, que te cobria, o teu lado da cama, e logo o voltaste a esconder. Ele ficou mais pesado. Sei que saíste, as molas do colchão disseram-mo com o seu gemido, bem como as minhas costas soltas do teu encosto, do teu peso. Tiraste-me os teus pêlos e fiquei só com as penas e voaste cedo sem um pio, um canto e o teu lado vazio, ali, para eu cair, ali, na armadilha, no sono. Não sonhei. Estiveste lá a noite toda, eu sei, está lá a marca na almofada da tua baba já fria.
Falei então com as minhas mãos, vamos, está na hora, façam o vosso trabalho, se chegaram até aqui podem agarrar no edredão e puxá-lo, vá, tirem-mo, destapem-me. E elas foram, uma a uma, com os seus dedos, um a um. Prenderam, agarraram, torceram, puxaram, amachucaram, viraram, trouxeram a tua almofada, a tua baba para a minha boca. E o edredão ficou, mais um pouco, mostrando que já não te encontravas.
Mais tarde ou mais cedo ter-me-ia levantado, o que acabei por fazer, mas a tua boca estava ali, naquele instante, naquele instante eu era testemunha da tua saliva. Eu vi-a, tocava-a, sentia-a, suportava aquele edredão sobre o meu corpo, enquanto tu saías cedo na tua bicicleta e o teu impermeável azul de pescador. Mais tarde ou mais cedo terias de o usar e usaste-o hoje, deixando-me o edredão. Pesado. De penas e nem um pio, nem um canto de pássaros lá fora. Daí, logo de manhã, pescador de bicicleta. Estando eu distraída, caí na tua arola, boca na baba, mãos na almofada. Mas esqueceste-te das minhas pernas, que foram empurrando e empurrando com os pés, caminhando e empurrando o edredão, pena a pena, num jogo de bem-me-quer-mal-me-quer. Hoje não me escapas.
Fui delineando o teu trajecto pela cidade enquanto me vestia, enquanto ouvia a tua música preferida daquela mulher com o nome de cidade santa proibida, santa e ocupada (pájaro me despertaste, pájaro no sé porqué). Deixei a cozinha para arrumares, os restos de comida nos pratos por deitar fora, a louça por lavar, as migalhas do pão no chão de falsos azulejos, tudo como tu me deixaste de manhã cedo. A parte estragada da manhã. Deixei-te ainda uma nota na mesa da cozinha que a tua mãe nos deu de empréstimo para sempre, porque já não tinha espaço na casa dela: os gatos miam, compra friskies; (mira que en la vida vuelvo já), mas mudei-lhes a água, coisa que não fizeste na tua pressa. O que é que tinhas assim de tão urgente para fazer, para não ligares aos gatos, não lhes dares água nova da torneira, e apenas deixares para trás uma poça de baba? Não tinhas em casa o leite e o café para a tua rotina? Se havia o leite e o café, se lá fora chovia, se nenhum pássaro cantava, se a cama estava quente como em todos os dias, os cigarros prontos à espera, que mais não havia que te faltasse?
Como sei que não gostas de discutir, vou surpreender-te, castigar-te pelo que me fizeste, hoje não era para saíres. Saí à tua procura, sei por onde gostas de andar, onde gostas de beber o teu café cheio, as livrarias debaixo das arcadas onde roubas livros descaradamente, à vista de todos, sem ninguém ver, perceber sequer que o livro se encontra nas tuas pequenas mãos. Viciaste-te na adrenalina, naqueles cinco segundos de cegueira parcial em que os olhos ficam enublados, toldados como o céu está hoje de nuvens e chuva. E se te denunciasse? Decidi isso mesmo no carro a caminho da cidade, o caminho que sei que fizeste, como todos os dias percorres, mas hoje mais cedo.
Fui para o convento, entrei no claustro e esperei. Uma vez subiste o caramanchão das uvas. Parecias um macaco num galho a apanhar banhos de sol, ou um pássaro à espera do bom vento para abrir as asas. Tive tanto medo que caísses, que estilhaçasses o teu joelho fraco, frágil. Mas não, não caíste, quedaste-te mudo, não te ouvi uma única palavra, como hoje, apenas música, como hoje. E os raios de sol na tua cara e o verde dos teus olhos a vibrar. Daquele dia só resta a música e mesmo essa não é a mesma. Depois alguém chamou-te exibicionista, mas para tu seres esse bicho, esse pavão, alguém tinha de ser o voyeur. Éramos todos. Hoje não vi ninguém ali para te ver ou que te tenha visto até à minha chegada. Eu estava ali, menina, sozinha, pronta para dizer o teu nome. Enquanto te aguardava fui colhendo umas poucas uvas ainda boas, a maior parte eram já passas. Eram doces como a tua baba em dias bons. Como tardavas fui eu hoje a exibicionista. Castiguei-te. Denunciei-te.
Gritei o teu nome até a música acabar, disse o que tinha a dizer, que tu não eras um bom homem eras mau estúpido cheiravas mal cozinhavas sempre a mesma coisa enganavas as pessoas fazendo-te passar por aquilo que não és aquilo que os outros pensam que és, disse que roubavas só tomavas banho dia-sim-dia-não, pensavas que as pessoas só te queriam mal e essa era a razão por seres tão calado, não era por pensares muito e, pior ainda, disse que tu eras distraído te apaixonavas como um bem-me-quer-mal-me-quer e não sei que mais disse porque a música acabou e todos estavam à janela e eu sozinha no palco, nua por demasiadas palavras. Ninguém me chamou de exibicionista. Eu continuava a ser a voyeur. Vendo todos empoleirados nas janelas, não consegui perceber se eu chorava ou se chovia ainda. Levei uma última uva à boca e fui-me embora, quando o último abutre fechou a janela, mãos nos bolsos.
Voltei para trás fazendo o mesmo percurso, à procura das marcas das rodas da tua bicicleta. Encontrei uma e fui seguindo-a, perseguindo-a até chegar à praça. Hoje não era terça-feira. Não percebi porque estava tanta gente na praça. Tão junta. Tão chegada. Tão partida. Tão alquebrada. Tão corcunda olhando as pedras da calçada. Voyeur fui me aproximando. Pedindo licença para ver melhor. Vi uma roda dentada e o teu corpo estendido com a cabeça aberta do teu lado direito, pescado na praça. Na mão tinhas uma gerbéria e uma caixa de ovos partidos. (En un abismo yo te esperé, con el abismo yo me enamoré). Deixei caír o teu nome na calçada. Virei-me e fui-me embora.
Ao chegar a casa pus a música de novo e reparei, justamente quando eu o menos esperava, um recado junto à garrafa que nos serve de vaso: falta aqui uma flor, espera por mim, amo-te. Pus a música outra vez e outra vez num raio de roda e voltei para a cama. O edredão já não estava tão pesado. A tua baba estava seca.
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