segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro

XI

Sob a luz de um novo augúrio, para mim, talvez o que pudéssemos chamar de um renascimento, pois que não só crescia uma recente riqueza no país, com os cofres se enchendo de ouro, pedras preciosas, panos drapeados de uma fulgurância estonteante, fluência de novos escritos literários, científicos, filosóficos, entre muitas outras coisas; também à nossa família lhe tinha sido concedida uma segunda chance de felicidade, com as suas bases fortalecidas por laços que antes se encontravam separados, partidos por distâncias líquidas imensas, pelo estranho desconhecimento do meu próprio nascimento e da suposta morte de meu pai que nunca antes tinha conhecido e, como nunca antes o vira nem me falaram dele, era como se nunca tivesse existido.
De facto, nunca antes vira a minha mãe tão agradecida a Deus, tão morada plena de toda a felicidade, de sorrisos grandiosos e brilhantes, iluminando toda a casa, albergaria e tasca. Agora, muito mais do que quando chegara, ela era a luz que alumiava os corações maltratados pelo amor e adormecidos pelo álcool, e ninguém lhe tentava tocar, não porque meu pai se fazia presente dando uma mão aqui e ali, mantendo a calma aos movimentos intempestivos de rufiões e jovens de cabeça perdida por cavalarias e oceânos longínquos, mas porque aquela luz dotava a minha mãe de uma característica somente lida nas hagiografias, aquela luz irradiante sem origem visível que dizem que os santos e seres celestiais sustentam.
Sobre a nossa família podíamos muito bem utilizar, porque se moldava perfeitamente às nossas vidas, o termo tantas vezes usado no mar: íamos de vento em popa, de velas defraldadas zarpando para um futuro sem obstáculos, aberto a todas as ofertas que a boa nova da fortuna nos pudesse trazer.
Eu ia ocupando o meu dia sem grandes alterações, ora no pátio tratando dos animais, ora no mercado junto à minha mãe, da minha tia ou do meu pai, consoante fosse uma ou outra ou outro encarregue de reencher a despensa, varrendo ao fim da noite a sala de jantar junto com todos e com uma vassoura miniatura que me tinham arranjado, brincando com os meus amigos – agora, em vez de batalhas religiosas em que nos transformávamos em guerreiros em defesa da cruz de cristo ou em pagãos de quarto crescente, viamos o nosso corpo a ser curtido pelo sal e sol, subindo e descendo cordas de cânhamo que calavam as nossas mãos, gritando ordens para aqui e para ali, para bombordo e estibordo, proa e popa, ordens que eram repetidas depois em coro, vendo pedras metamorfosearem-se em gigantes, árvores em serpentes marinhas, as raparigas que por acaso passassem em belas sereias de vozes melodiosas embora traiçoeiras, ouro, pratas, rubis, safiras, ágatas, todas as pedras preciosas que nem sabiamos o nome, o que antes eram simples cascalhos – e pedindo a meu pai que me contasse histórias que tivesse vivido, ouvido ou alguém contado, que peixes existiam, como viviam, de que cores eram, se de facto haviam monstros nas profundezas e nos abismo dos mares como apareciam descritos no livro sagrado, tal como esse leviatã que engolira Jonas, ou então, como eram os homens e mulheres de lá do longe, que língua falavam se falassem, que modos e costumes tinham se tivessem, que faziam no seu dia-a-dia se houvesse dia-a-dia, se eram ou não tão diferentes de nós como ouvia os meus amigos dizerem.
O meu pai, pacientemente e quando para aí estava virado, o que era muito raro, ia me contando o que lhe demandava, mas não tudo de uma só vez, somente nas vezes em que era ele quem me deitava na cama. Muito do que eu queria saber, por pura curiosidade, aprendi e apreendi nos seus silêncios, nos seus olhares. Eu não sabia como era o meu pai antes de embarcar, nunca me tinham falado dele como já vos disse e do pouco que conheci pouco me recordo. Fecho os olhos e vejo-o mudo, mudando as coisas da casa, móveis, cadeiras, louça, bebendo copos de vinho tinto, fazendo serviços para a minha tia e minha mãe, ao fim da noite sentado num canto de frente para o lume murmurando umas quantas palavras cofiando a barba. À noite poder-se-ia dizer que era um objecto mais na casa que ele próprio mudava de sítio, transportava sem esforço. Mas no fundo penso que ele se sentia feliz por estar de novo em casa, junto da sua mulher e do seu recém-nascido filho. Éramos felizes, se assim se pode dizer, sem grandes discussões, sem arrufos, ciúmes, tudo o que podia azedar as relações da família.
Ora, certo dia, quando o calor da primavera começava a nos tentar a dar um mergulho no mar, já no final do dia, dirigi-me para a praia sozinho. Os meus amigos tinham assuntos a tratar, assuntos e deveres típicos de crianças para com os seus pais, enquanto eu me encontrava liberto já dessas funções, como tratar dos animais, dar-lhes comida e de beber, escová-los, falar-lhes, arrumar o nosso quarto. Como estava livre, porque despachara tudo logo de manhã até ao meio da tarde, e como fazia realmente muito calor, desci até ao agora Cais do Sodré e fui andando para Alcântara ao longo do rio. Atirei-me para a areia, tirei os meus sapatos e a minha camisa de linho e de calções corri para a água fria, mergulhando nas pequenas ondas que rebentavam. Durante horas mergulhava, saía, rebolava na areia fazendo-me de croquete e voltava para a água. Não havia mais nada na praia que me satisfizesse mais, que me deixasse mais calmo e feliz, do que fazer perdurar aquela sensação de choque térmico quando o corpo gelado pela água encontra a fervura da areia aquecida pelo sol; e depois de muito correr, saltar, mergulhar, rebolar, chapinhar, esbracejar, de repente deixar-nos tombar na areia, fechar os olhos e sermos levados por um remoinho que nos enrola como as ondas, porque sentimos que elas rebentam não atrás de nós mas nos nossos ouvidos, e de tanto rebentar, de tanto rodopiar naquela quietude do nosso corpo, porque nunca deixámos de estar quietos, não sabermos onde estamos e adormecermos com o sal a encarquilhar a nossa pele.
De facto tinha adormecido, pois que quando acordei o sol já se ia despedindo e a maré começava a subir mergulhando os meus pés em espuma. Fui despertando calmamente, sem muitas pressas, sacudindo a areia dos braços, das pernas, do cabelo, do tronco e por fim dos pés, o que sempre foi o mais complicado de se fazer. Fiz o melhor para tirar a areia de dentro dos meus sapatos e da camisa. Vesti a camisa mas deixei-me ficar descalço e decidi calçar-me só quando estivesse em terra firme, no molhe.
Fui nessa altura surpreendido por um estranho homem andando sozinho pela praia. Digo estranho porque não era normal àquela hora as pessoas irem para a praia, mas também porque, embora não o ouvisse, parecia-me que se encontrava fulo da vida, chutando pedras, pedrinhas e conchas, batendo de vez em quando com as mãos nas pernas, abanando a cabeça, parando, virando-se para o mar, virar-lhe costas, rodar sobre si como se mudasse de direcção, dando passos em frente para de novo estacar e rodar sobre si e de novo recomeçar a andar alternando velocidades. Muitas vezes, quando parava e defrontava o mar, parecia que falava com ele, que discutia de forma muito nervosa, não como um monólogo mas como num verdadeiro diálogo, porque eu percebia nos seus movimentos os sinais de pergunta e resposta, de argumentação e contra-argumentação, de acordo e de desacordo, esses gestos tão comuns a todos, o abanar da cabeça concordando ou contradizendo o que o outro disse, os diferentes gestos de ombros, de fastio, de má compreensão do que é dito, de desconhecimento das razões ou respostas que se deveriam dar, ou então esses das mãos que modelam as palavras, que lhes dão mais acento, mais rigor e vigor, que as acalmam, que as arredondam, que tentam conduzir o ouvinte num caminho que esse não viu. Sempre que o homem andava eu seguia-o ao longo do cais, escondendo-me por trás de barcos, cordas, dunas, tentando perceber o que o homem dizia, do que se queixava.
A certa altura já me encontrava bastante perto do homem, embora ele não me visse nem eu lhe pudesse ver o rosto, pois o sol já se tinha posto há já bastante tempo e era noite de lua nova, o que impossibilitava a visão de qualquer um sem a ajuda e o apoio de uma lanterna de azeite ou de uma forte tocha. Contudo, percebia-lhe ainda os movimentos nervosos, sabia-o ainda em discussão consigo e com o mar. Até que a dado momento e estando eu ainda mais perto, uma vez que ali onde nos encontrávamos se fazia uma pequena baía, um quarto de lua que nos afastava somente pela altura das dunas, eu no topo, ele na areia junto à água, reconheci um pequeno bote ao qual ele juntou uma longa corda, que eu não tinha ainda visto e se encontrava a tiracolo. O homem sentou-se lá dentro, desenrolando e enrolando a corda, conversando ainda com o mar e consigo, ou com Deus, não sei, mas muito mais calmo do que anteriormente, como se aquela sequência de acções, de desenrolar e voltar a enrolar, o amansassem da ira, da raiva, do desgosto que o atormentava. Sei, agora, que era desgosto, porque ao relembrar hoje aquela noite, depois de ter conversado longas horas com um velho pescador numa noite de lua nova como aquela, no que foi a albergaria da minha tia, me ditou uma quadra que já ouvira antes, quero dizer, naquela mesma noite pela voz daquele homem que desconhecia. Hoje, repetindo aquelas palavras, sei-as plenas de desgosto e de tristeza, mas naquela voz, naquela noite, pareceram-me antes apenas uma ladainha para o acalmar, como uma pequena canção que se canta quando executamos um trabalho, como cantavam as ceifeiras e os pescadores, pelos campos fora ou trabalhando nas redes. O homem desenrolava e enrolava e desenrolava e ia dizendo:

“Das pedras que o mar rolou e trouxe
À folha de areia sob a prensa do ar,
Uma foi punhal, outra coração,
Num texto tirado fora do olhar”

Aquilo assustou-me, não vos vou mentir. Assustou-me e fugi. Fugi para casa ao encontro da minha mãe, do meu pai e da minha tia. Corri, corri e corri, sem olhar para trás, sem querer saber se o homem me tinha ouvido ou visto a fugir dali.
Chegando a casa abracei a minha mãe sem dizer uma palavra. Ela pensara que eu apenas demonstrava o meu amor por ela num gesto de afecto. Procurei com o olhar o meu pai. Não estava. Procurei-o e não estava em lado algum. Perguntei à minha mãe pelo meu pai. Disse-me que tinha saído para dar uma volta e já voltava para o jantar, que não me alarmasse, mas o melhor seria eu ir comendo porque de certeza que estava muito cansado de ter estado na praia tanto tempo a brincar, a correr, a saltar, a mergulhar. Sim, estava cansado, e aquele pânico que tomara conta de mim deixou-me ainda mais cansado. Comi e fui directo para a cama.
Mais tarde ouvi o bater da porta e os passos do meu pai a subir a escada que dava para os quartos no andar de cima. Ouvia-o a trautear uma música, como se canta quando não se sabe a letra da canção. Para mim era um sinal de que tudo estava bem, que em nossa casa ainda se era feliz, pois não se canta quando se está realmente muito, mas muito, desgostoso e triste. Ele abriu a porta do meu quarto. Na contraluz não lhe conseguia ver o rosto e como estava ainda adormecido, sem saber se ainda sonhava ou já acordava, o seu corpo ali iluminado pelas costas fez-me lembrar o homem que antes tinha visto e rapidamente me sentei na cama. O meu pai entrou e tentou acalmar-me, perguntou-me se eu tinha tido um pesadelo, disse-lhe que sim que tinha sido isso. Então ele disse-me para me deitar de novo e que ele ficaria ali até que eu adormecesse. Fui-me recostando no colchão e fechando os olhos e o meu pai recomeçou a trautear a canção com que subira a escada. Até que, quando estava mesmo a adormecer, do trautear o meu pai passou para a música realmente, com letra e tudo, e mal me apercebi do que dizia ergui-me da cama mas logo tudo ficou escuro e silencioso.

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