terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro

XII

O mar é o ladrão.
De pais e filhos o mar é o ladrão
Alexandre O’Neill

Sei que tudo continuava escuro, mas o silêncio terminara há muito. Sentia-me como quando me deitara na praia depois de tantos mergulhos, correria, enrolanços na areia. Tudo estava a rodopiar no escuro e ouvia ondas de choque e de palavras. Ondas muito diferentes daquelas que estava habituado a escutar deitado na areia da praia. Estas ondas, ao contrário das outras, não pareciam ter a mesma origem, quero dizer, escutando-as com a atenção devida, não pareciam formar-se ao longe e lentamente ganhando força até rebentar de encontro às duras rochas e beira-mar. Eram ondas bruscas, rápidas, incisivas, não rolavam mas antes como que cortavam, batiam em coisas menos duras que as rochas, demoravam segundos, conseguíamos perceber o seu início ouvindo um curto sopro e depois imediatamente encontrando o seu fim num qualquer objecto que eu não sabia o que era. O objecto, no qual as ondas chocavam contra aos poucos e poucos, ia fraquejando, amolecendo, isso dava para perceber com bastante clareza. Não havia aquele rebentar a que estamos habituados a ouvir, redondo, explosivo e suave ao mesmo tempo, esse som que se esfuma em espuma. O rebentar de ondas que ouvia era seco, mas uma secura, uma aridez, que sucessivamente se foi tornando húmida, mole, gotejante, percebia-se até a formação de poças.
Fui abrindo com cuidado os meus olhos, não queria que o meu pai notasse que acordava. Muito a medo tentava abrir uma nesga de dois olhos inchados, doridos e quando consegui entreabrir ligeiramente um, refreando a dor que me abalava e me deixava enjoado, tinha a impressão de que a minha cabeça tomara dimensões desproporcionais para mim, uma forma monstruosa, achatada em cima e prolongando-se para a frente e para trás ao mesmo tempo e mantendo-se nessa forma porque um enorme peso me empurrava o crâneo para dentro e um enorme espeto com duas garras incrustadas nos ossos do meu cérebro, uma de cada lado, me arrepanhava a carne e pele puxando-as cada uma para o seu lado. Tinha a impressão de que me transformara num monstro, num horrível e deformado monstro, castigado por uma dor atroz.
Quando consegui, finalmente, abrir uma pequena nesga de visão, descobri que mar e que ondas rolavam e contra que praia e rochas embatiam. O meu pai era o grande oceâno e minha mãe a terra que o recebia. Essa terra estava, tal como eu, deformada, machucada, destroçada. Quase que não conseguia perceber que aquele corpo inchado, ensopado em sangue, cheio de nódoas negras, cortes, rasgões, era a minha mãe. Diria antes um boneco deitado para o lixo que tivera sido brinquedo de um cão, onde experimentou enquanto jovem os seus futuros ataques e defesas com as suas ferozes e mortíferas patas e dentes, uma boneca de trapos que fora arrastada pelo chão presa a uma carroça por um fio ao longo de um caminho cheio de pedras pontiagudas que lhe abriam buracos de diversas dimensões.
Perguntava-me onde estaria a minha tia, que seria feito dela, estaria morta como seria o nosso destino daqui a alguns momentos? Teria fugido para pedir ajuda aos soldados que faziam as rondas nocturnas na cidade? Como é que, estando em casa connosco, não ouvia os guinchos e gritos da minha pobre mãe? O que é que ela estava a fazer de tão importante que não vinha interromper o meu pai? Por que não surgia ela assim de repente com uma enorme colher de pau e zás com uma violenta pazada punha o meu pai de rastos no chão desmaiado e depois continuava até não haver pai e ser uma outra coisa qualquer que ficava no chão, uma coisa morta, uma hipótese de corpo, uma sugestão de homem? Onde estão quem nos pode ajudar quando precisamos?
Perguntava-me há quantas horas estariamos nós ali? Era ainda noite, isso dava para ver pela janela, mas não saberia dizer que horas seriam pois não vinham quaisquer sons da janela que estava fechada, embora quando fechada se pudessem escutar de vez em quando os sinos da igreja, os cães ladrando de uma ponta a outra da cidade, cantorias bêbedas, portas a serem trancadas, cumprimentos educados de boas-noites, mas desta vez nada se ouvia, nada vinha da rua, abafada que estava pelos sons horrríveis da carne a ser batida.
O quarto encontrava-se semi-iluminado, amarelo-torrado, laranja pôr-de-sol, castanho de folha de outono, negro, mas vivo devido ao tremeluzir de umas quantas velas, três torres, três colunas perfeitas formando o topo de uma construção que apenas descobrimos nas profundezas de grutas em expedições de acaso. As paredes estavam sarapintadas de vermelho negro, manchas arredondadas de diferentes pincéis, umas notavam-se a origem em cabelos longos, outras de mãos quebradas, outras ainda de partes do corpo pouco habituadas à pintura como bochechas, coxas, seios, nucas. Pensei que grande parte daquela obra de arte, que apenas seria reconhecida como tal neste século em que agora vos conto esta história e vocês a lêem, estaria terminada, já que o meu pai se encontrava umas vezes parado outras a andar de um lado para outro como já o vira fazer na praia horas antes. Não parecia nada cansado e esse momento que qualquer um caracterizaria de insano era afinal de uma calma imensa. Posso afirmar que o meu pai estava tão calmo como um padre iniciando a missa, mais ainda, ele era a encarnação da calma. O quarto estava do avesso, uma despensa de móveis, um armazém de mobília atravancada, cama deitada de lado, mesas e cadeiras partidas notando bem o como foram quebradas, apenas a pequena mesa-de-cabeceira permanecia intacta com as suas velas dardejando as sombras. Minha mãe encontrava-se deitada, encolhida sobre si mesma, com um braço protegendo o que restava do seu antes belo rosto, o outro elevando os joelhos para o peito, um corpo informe, ingente, deitada sobre uma poça de sangue, urina e fezes, tal como eu me encontrava sentado em cima de uma poça da mesma natureza de pânico e violência.
O meu pai ergueu um banco, pensei que o atiraria à minha mãe, à minha pobre e infeliz mãe, e pousou-o a meio caminho de nós os dois, elaborando um triângulo familiar, ele no vértice, para ter a visão completa de minha mãe e eu, eu da minha mãe e dele e ela, se conseguisse levantar a cabeça e abrir os olhos, de nós os dois. De certa maneira, não consigo evitar agora um certo olhar irónico sobre o que sucedeu, estávamos de novo juntos, éramos novamente uma família. (Poderá parecer um pouco paradoxal lendo vocês isto quando no início vos disse que quase nada me lembrava dos meus pais e do que lhes aconteceu, correcto? Certo. Mas o que sucede é que agora, enquanto escrevo isto, em 2008, tudo me está a vir aos solavancos à memória, pedaços de uma longa tapeçaria que vou cosendo com muito pouco minúcia, com um certo desgosto, tocado por uma certa infelicidade, embora com o discernimento e distância suficiente – sim, parece-me com uma distância suficiente já que tudo isto se passou no século dezasseis – para, com a memória e com toda a verdade que me é permitida, fazer com que a minha memória adormecida ficcione a minha verdadeira memória, que não deixa de ser monstruosa e mentirosa como a de todos e, lendo vocês isto, fazer com que desperte na vossa, através de uma pressão e marcando, deixando um rasto, a monstruosidade da vossa, quero dizer, despertar-vos a curiosidade e a vontade de vocês mesmos procurarem as vossas memórias e descobrirem que quando lembram ficcionam a vossa própria vida).
Meu pai parecia-me mais calmo do que nunca antes o vira. Talvez tudo já tivesse passado, talvez. Acho que afinal só deixou a minha mãe descansar um pouco, que voltasse a si, que se recompusesse do transtorno que lhe dera, porque assim que deixámos de ouvir a sua respiração lenta e pesada de quem dormia e retornaram os gemidos, o meu pai, dando um safanão nas pernas da minha mãe com um dos seus pés, logo voltou à carga.
“Vá, abre-me esses olhos e deixa-te de mariquices”, disse ele com a maior displicência, “vá, então, pára lá com isso, até parece que alguém te fez mal”.
Minha mãe não lhe conseguia responder de maneira nenhuma, tão mortificada e molestada estava e eu, cheio de medo de que ele me esmurrasse novamente e me cegasse de vez, deixava-me estar quieto e quedo, mas fervilhando de raiva, com ganas de o matar.
“Dizes-me então que este fedelho de seis ou sete anos é meu. Este puto ranhoso que anda por aí ao deus-dará, é meu, dizes tu. Dizes-me também que nunca dormiste com ninguém na tua mísera vida, que sempre seguiste os preceitos da Igreja e os ditos e escritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que manténs intacta, imaculada, impoluta a tua virgindade. Só que eu chego aqui, sem me deitar nunca contigo, pensando sempre em ti, escrevendo para ti, desejando-te cada dia que passava sempre e sempre mais, desejando-te a ti toda e não, não me deitei com nenhuma mulher depois de me casar contigo; e chego aqui e deparo-me com esta réplica tua, esta infeliz réplica tua, um teu duplo. Tu sabes que ele está marcado por uma maldição, não sabes? Está marcado pelo Diabo em pessoa, tu não vês porque é teu filho, teu e não meu, é teu filho e está marcado pelo diabo e não vês porque a marca está na sua alma. Ele ao menos foi baptizado? Foi? Isso não chega. Aquela água benzida apenas lava o corpo, nunca entra para dentro do corpo, nunca chega a percorrer o seu interior, nunca chega a lavar as marcas negras e diabólicas da sua alma, nunca chega ao segredo do corpo onde a alma está alojada, fica só cá por fora a água. Bebeu-a ao menos? Claro que não, nem o padre a bebe, ninguém nunca bebeu água benta, ninguém está salvo, está a salvo. Só talvez com a morte que ninguém sabe o que é porque também ela está escondida com a alma. Percebes?
“Não...”, despertava a minha mãe, tentando pôr um bocado de ordem no discurso do meu pai, esforçando-se pela verdade que sentia ser a sua e a minha, “não... percebo... ele... é ... teu... estou... te a... dizer... a... verdade... meu... amor”.
“Não digas essa palavra sua mentirosa... sua mentirosa pecadora. Estarás cega por ventura? Não vês o monstro que ele é e no que te transformaste?”, lá nisso ele tinha razão, eu era um monstro, mas só o soube quando vi todos aqueles que conheci morrerrem aos poucos e poucos e eu a ficar por aqui a vê-los cair e a envelhecer tão lentamente que ainda só tenho vinte e oito anos. O meu pai continuou com a sua distorcida lógica da vida, por isso dou-lhe a palavra.
“Foi-nos sempre dito para acreditarmos no que nos dizem, que pela palavra, quando dita frente a frente, temos uma entrada à alma da outra pessoa, um corpo invisível de verdade que nos toca na alma, que pela voz se chega à verdade. E acredita que me esforço por acreditar nisso, agora. Acredita que estou a tentar acreditar em ti quando me dizes, aqui e agora, como o disseste antes no dia em que cheguei, aqui frente a mim e ao teu filho, porque se nota bem que ele é teu filho, tem os teus traços, ou pelo menos esforço-me por vê-los embora não os veja, que me dizes a verdade. Mas a não ser que sejas a Virgem Maria, o que seria uma blasfémia, e eu José, que o não sou, e aquele fedelho Jesus, que a qualquer momento pode ser Cristo se eu me der ao trabalho de o crucificar, é que poderei acreditar nisso, até lá mentes, mentes com os poucos dentes que ainda tens. Queres que eu tos volte a pôr para mentires melhor? Olha tens aqui um”, e ele pega num dente ensanguentado que estava perdido junto ao seu pé e demora-se a olhá-lo, continuando o seu discurso como se a minha mãe agora fosse aquele dente, “não tens saudades daqueles tempos em que éramos felizes? Quando nos conhecemos, quando nos fomos conhecendo, quando já nos conhecíamos. É uma vergonha isto, isto que nos sucedeu, é obsceno, é obscena esta criança que parece que tem o vento no corpo, sempre de um lado para o outro, sempre a correr sabe-se lá para onde, sem direcção, sem rumo, sem saber o que fazer de si, andando às voltas e às voltas, sem fazer nada de si, vai do quarto para a sala, da sala para a cozinha, da cozinha para o pátio, do pátio para a rua, da rua para outras que lhe aparecerem à frente sem rumo certo e depois volta e lá está ele de um lado para o outro a correr, e de certeza que quando está parado, por dentro, bem lá dentro, está num corropiu, de um lado para o outro a correr dentro dele. É que eu não sei de onde é que ele vai buscar aquela energia toda, de ti é que não é, nisso ele não sai nada a ti, já reparaste bem, de ti é que não é esparramada como estás aí no chão como se não houvesse trabalho para ser feito, sua preguiçosa”, e nisto atira-lhe com o dente à pouca cara destapada e pisa-lhe as canelas que se quebraram.
“Não... me... batas... mais... peço-te... por favor... não”.
“Então diz-me de quem é este miúdo e não me mintas mais.”, gritou. A minha mãe com grande esforço relatou a história da minha geração, pela parte que lhe tocava. Contou-lhe daquele dia em que no meio da azáfama da taberna tentou ajudar a outra rapariga e se sujou de molho e se foi limpar. Contou-lhe que nesse quarto das traseiras se lembrou dele, das cartas que ele lhe escrevera do alto-mar, do amor que sentia por ele e que então um vento irrompeu da janela e a tomou como um homem toma uma mulher, que ela tentou lutar contra esse vento mas que não conseguiu porque nesse vento vinha voando o cheiro dele, do seu homem, do seu marinheiro, do seu marido e que entretanto tinha desmaiado e foi encontrada pela tia e que ela pode confirmar que tudo o que já lhe contara e que de novo contava era a mais pura e inteira verdade, pois duas vozes podiam confirmar, validar pelo testemunho na primeira pessoa, porque a tia vira que ninguém, mas mesmo ninguém, lá se encontrava no quarto senão ela, pois que todo o quarto estava trancado, a janela tão pouco aberta que ninguém passaria por ela e que a própria tia tivera que arrombar a porta para poder entrar e ver o que se passava. De repente lembrou-se, já que ele não tinha cara de quem crêsse na mais pequena palavra, que poderia confirmar palavra a palavra, frase a frase, sentimento por sentimento tudo o que agora mesmo contara no seu diário.
“Outra vez com o maldito diário. Mas qual diário se já virei o quarto do avesso e ele não aparece? Foi com esse vento que te possuiu? Desapareceu, assim, sem mais nem menos?”
“Não... ele está...ali”, minha mãe tentava tudo por tudo para que ele acreditasse na sua palavra, só que realmente era muito difícil sem o diário para comprovar. Eu próprio já começava a duvidar da palavra da minha mãe.
“Diz-me onde está que eu vou lá buscá-lo”, disse de repente. O meu pai, assim que reparou que afinal eu estava desperto, rapidamente me pôs a dormir novamente com um belo soco enfiado na bochecha direita. (e lá vem a ficção tomar o controlo de tudo, como se ela não estivesse sempre aqui connosco, sempre desde que abrimos os olhos para o mundo).
Meu pai não aguentou muito mais aquele teatro, aquela encenação que lhe prepararam desde que embarcara rumo à Índia. Pensava que toda esta história do filho, do vento, do diário, era uma bela trama que a sua mulher lhe montara para encobrir a traição, bem arrojada, bem montada, bem planeada e imaginativa, mas infelizmente muito pouco crível, apenas incrível, era a palavra certa para descrever tudo isso. A lata dela, meu Deus, os nervos de aço para não se desmanchar durante este tempo todo e ainda por cima manter firmemente a convicção de que não mentia, há que se lhe tirar o chapéu, sim senhor.
Estando farto de tudo, o meu pai pegou na minha mãe e atirou-a com tal força contra um baú virado de lado que não só quebrou definitivamente o pescoço da minha mãe como, o que todos já sabemos desde o capítulo VI, o botão de segurança de uma gaveta oculta aos olhos de todos, fazendo saltá-la revelando-lhe o seu guardado segredo. Vendo aquilo ali mesmo diante dos seus olhos, o meu pai por momentos tremeu. Seria verdade? (claro que sim, já todos sabemos isso). Acocorando-se ao lado do corpo morto da sua mulher e do baú, a sua mão procurou o interior da gaveta e lá dentro encontrou um maço de papel e um grosso volume que ao tacto parecia ser um livro. Sacou os objectos da gaveta e dirigiu-se para a cama junto das velas. Reconheceu imediatamente a sua letra no maço de papel. Eram as suas cartas. Depois mirou o volume. Era um livro, de facto, era um livro. Olhou para a sua mulher. Abriu. Fechou. Olhou para a sua mulher. Foi ver se ela ainda estava viva levando as velas consigo. Não estava. Sentou-se no chão. Abriu o livro. Admirou a letra dela, os redondos, aqueles traços tão semelhantes ao corpo dela, percebia-lhe os movimentos, via a sua mão a rabiscar o papel com uma pena. Com um dedo imitava os supostos movimentos daquela mão que agora jazia morta. Foi saltando as páginas, primeiro dobrando o livro para a direita e soltando-o rapidamente criando uma pequena brisa que lhe movimentou o cabelo e as velas, depois para a esquerda e tudo se repetiu mas com menos ar. Sentiu vindo do livro o cheiro das mãos da sua mulher. Fechou o livro. Voltou a olhar para ela. Abriu ao acaso e levou o livro ao seu nariz. Inspirou. Inspirou mais demoradamente. Inspirou longamente. Fechou o livro e os seus olhos. Tremia. Abriu o livro. Fez contas. Procurou a data que pensava que seria a da geração do seu filho. Encontrou uma, no topo à direita. Não era, mas leu à mesma. Sorriu. Leu a que se seguia. Sorriu melhor. Encontrou outra entrada. Deixou de sorrir. Leu. Era aquele o dia. Era. Era aquele. O dia, a história, os movimentos, a violação pelo ar. Não podia acreditar. Não ainda. Não podia acreditar que ela não lhe mentira. Voltou para a primeira página. Talvez lendo do princípio para o fim, em alguma entrada do diário, descobrisse a presença de outro homem. De certeza que se houvesse ela tê-lo-ia escrito no seu diário. Afinal, é também para esses segredos que os diários servem. Não. Ele era o único homem da vida dela. Olhou então para o seu maço de cartas. Retirou o cordel que as envolvia e folheou-as uma a uma. Havia uma que tinha aquela data. Depois lembrou-se daquele dia em que desmaiara depois de ter escrito aquela carta e do vento que se levantara empurrando a nau para o seu caminho. Pôs a sua carta e a página do diário lado a lado. Leu uma e depois a outra. Saltou de uma para a outra parágrafo a parágrafo. E fez-se luz. Aceitou finalmente o que a mulher lhe dissera. Tinha sido tudo verdade e nada do que contara tinha sido ficção, mentira, embuste, trama, encenação. Antes tivesse sido. Chorou.
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Quando despertei estava sendo embalado pelo mar, sentia as ondas a levantarem e a baixarem um barco, escutava o chocalhar das ondas de encontro à madeira. Fui abrindo os olhos e o meu pai, agarrado à minha mãe, mantendo-a de pé, enrolava à volta dos seus dois corpos, pela cintura, uma longa corda. Segurando a minha mãe pela cintura, baixou-se e pegou numa pesada fateixa. A mão que amparava a cintura subiu pelas costas da minha mãe pegando-lhe a cabeça e beijou-a enquanto a outra mão atirava para a água aquela pequena âncora. Ouvi o som da corda a roçar o bordo do barco e depois estalar. Os meus pais foram puxados para fora do barco virando-o. Devo ter desmaiado, deveria estar ainda a dormir e a sonhar.
O meu corpo enrola-se na areia, ouço o meu pai e não sei o que ele diz, enrolou-me, bateu-me e desmaiei, só porque o meu pai se sentia infeliz.

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