domingo, 20 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro

X

Lembro-me que fazia frio. Um vento húmido, salgado e de agulhas de areia entrava de rompante pela sala de jantar da albergaria. Ficámos ali muito tempo, eu, sentado, o homem, segurando a porta, e a minha mãe, de boca aberta levando o pano de cozinha tão mas tão lentamente à boca. Não sei quanto tempo ficámos ali os três, quadro vivo, pequeno retábulo de família só faltando uma pequena legenda por baixo. Mas alguém tinha de fazer qualquer coisa, dizer qualquer coisa, sei lá, respirar ao menos, o que parecia que não fazíamos de todo. O homem acabou por fim por me dar a mão. Estendia-ma lá do alto da sua altura, uma mão grossa e dura, calejada, carapaça de caranguejo, enquanto com a outra fechava a porta de entrada. Por momentos eu não lhe sabia o que responder, porque se tratava afinal de uma resposta que devia dar, e hesitando entre agarrar aquela mão e de um salto me pôr atrás das saias da minha mãe, os meus olhos corriam desenfreados de pânico, os meus ouvidos entupidos estalavam com o tum-t-tum do meu coração pequenino. E se aquele homem, com aquela conversa toda dos ladrões e assassinos, não fosse ele próprio um ladrão e assassino, que me enrolou e me amansou com toda aquela conversa de me levar lá dentro e isso tudo só para me seguir quando não estivesse à espera. Como é que eu iria fugir daquilo, como poderia eu escapar das garras daquele tritão e salvar a minha mãe, esse era o meu pensamento naquele instante, pois porque quando somos crianças sentimo-nos sempre − e é sentir o que quero dizer e não pensar que somos porque todos os nossos gestos quando em risco, todos os nossos músculos, agem nesse sentido − como os heróis salvadores das nossas mães em perigo, quero dizer e sem querer fazer generalizações, pelo menos eu pensava assim.
Talvez por me saber assustado, tolhido pelo pânico, por aquela sensação de impotência heroína, o homem, que ainda eu não sabia que era o meu pai, acocorou-se e indicava com pequenas tremuras dos olhos e das mãos que me devia agarrar e me erguer, dando pequenos espasmos às mãos e guiando-me com os olhos ao espaço vazio a que me devia agarrar, todos os seus movimentos convidavam-me a levantar apoiando-me nele, tal como eu fazia aos meus amigos nas nossas batalhas ou eles a mim se era eu o caído morto ou ferido sangrando aquele sangue que só nós sentimos e vemos escorrer das nossas feridas.
A medo, a muito medo, a minha mão foi ao encontro da sua, bóia salva-vidas no mar de medo que me afogava, abismo profundo que me impedia de ouvir e ver a minha mãe, que decerto se encontrava atrás de mim, estátua alegórica do espanto, e que nada fazia. Fechei a minha mão na sua, a sua irmã agarrou-se-me ao cotovelo e sem esforço por aí além, uma pena apenas nas suas mãos, soergueu-me fazendo-me saltar do chão num único impulso. Senti sacudirem-me a serradura e a palha das minhas costas e o do meu rabo, nesses movimentos precisos e prontos da atenção maternal. Os meus olhos não se descolavam dos do homem, até que os dele se desviaram para os da minha mãe e de volta para mim. Sorriu ligeiramente.
“Não te sabia aqui.”, disse o homem.
“Não – moro – te sabia – aqui – vivo – senhor.”, dissemos minha mãe e eu não sabendo a quem ele se dirigira. Riu-se agora do coro medroso.
“Cheguei hoje ainda há pouco. Encontrei este rapaz lá em baixo no porto e agora encontro-o aqui, junto a ti... É teu filho?”
“É, é meu filho... é... teu... é também teu filho... é o nosso filho.”
“Unh. Está bem, se o dizes, acredito. Não me mentirias, pois não?”
“Não, claro que não.”
“Há alguma coisa que se coma nesta casa? Não como há um, dois dias. Acabaram-se-nos as provisões que trazíamos da Índia a meio da nossa costa e tenho uma fome de tubarão.”
“Sim, ainda sobrou algumas coisas do jantar. Senta-te aí nessa mesa junto ao lume de chão que eu trago-te já.”
Minha mãe saiu da sala e entrou na cozinha atrás do balcão. O homem sentou-se num banco, deixando cair o seu saco de pele junto aos seus pés e inclinou-se para o fogo, esfregando as mãos. Ainda assustado, fui-me aproximando do marinheiro, encurtando a distância que nos separava com pézinhos de lã.
“O senhor... o senhor é meu pai?”
Sem sequer se voltar para mim, eu que já estava ao seu lado quando lhe perguntei a minha maior dúvida de então, saber quem afinal era o meu pai e me livrar do estigma, desse anátema, da orfandade, embora a minha Tia sempre me dissesse que todos nós éramos filhos de Cristo nosso Senhor e por essa razão não era eu órfão nenhum, o marinheiro diz-me que sim, segundo a minha mãe, sim, ele era meu pai. Com o mesmo impulso que me senti erguido do chão por aquelas mãos que se esfregavam procurando guardar o calor do fogo, me agarrei ao seu pescoço.

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