sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro

VIII

Tal como já vos tinha dito, esta história, que ora conto, foi recolhida junto dos idosos da minha terra durante largos anos quando, depois de também eu ter zarpado por esses rios acima, voltei para o enterro da minha tia-avó, quero dizer, para depositar um frondoso ramo de flores na sua campa e, vendo-me só num local a que já não podia chamar casa, me decidi a criar raízes, tentar conhecer melhor quem foram os meus pais. É com grande esforço que vos conto esta mesma história, visto nos encontrarmos agora nos alvores do ano de dois mil e oito e embora tenha vinte e oito anos, já muitos séculos passaram sobre o dia dos tempos da minha vida. Está correcto o que digo, é sobre o dia dos tempos da minha vida, como me gerei e cresci, e não sobre essa metáfora que certas vezes se usa de noite dos tempos. Seria noite se não houvesse qualquer luz sobre esse tempo, ou se falássemos do fim dos tempos. Sou ainda demasiado novo para falar disso e o tempo corre ainda, como por mim flui, desamparado. Poderia contar-vos muitos acontecimentos sobre o mundo, é certo. Contudo largo isso nas mãos devidas, aos historiadores, claro. Não sou um Mouro Velho de Diu como aquele contado por tantos que conheci e li, Castanheda, Andrada, Sousa Coutinho, Diogo do Couto, Simão Machado. Sou somente um velho de seis séculos e no entanto tenho vinte e oito anos e o tempo corre ainda, como por mim flui, desalmado.
Correu então o tempo e no ano de 1498 explodiu a notícia em Lisboa da chegada da armada de D. Vasco da Gama à Índia. Explodiu de facto a boa nova e festas e arraiais fizeram-se por todo o reino. Homens e mulheres, jovens e crianças, saíram à rua para celebrar mais um feito do pequeno país que crescia em riqueza, apenas vista entre todos pelas monumentais construções arquitectónicas e as faustosas roupagens dos nobres quando estes se passeavam entre o povo. Minha tia e mãe, por seu lado, continuavam pobres, trabalhando todos os dias sem descanso, de manhã à noite. E se a condição empobrecida de ambas não diminuía, numa a velhice rasgava-se nas rugas, nos dentes caídos, nas cãs escondidas pelo pano da cabeça; na outra, a minha mãe, arredondava-se a barriga oculta no avental e outros mais panos para que não a denegrissem de pecadora ou monstra. Em verdade, ela própria não conseguia explicar tal feito tão pouco natural, do nada ou da fome que lhe costumava grassar no estômago brotar um ser qualquer que lhe dava as voltas à comida, que lhe revoltava o interior, lhe davam ganas estranhas, que lhe bulia os movimentos, que lhe engrossava a bexiga e ao mesmo tempo a fizesse sentir a mulher mais bela do mundo, pela união secreta que se estendia dela para lá da história, ligando-a à primeira mulher e à profana mãe de Deus.
Como fora a tia a descobri-la naquela desgraça sobre a enxerga, violada pelo ar, acreditando nas palavras da sua nova sobrinha, tentava também ela encobrir o estranho acontecimento de uma barriga bojuda de vida, rezando embora todas as noites a Jesus Cristo que lhe trouxesse luz sobre o enigma, aquele mistério de Maria. Quando entrara na salita contígua à cozinha e ao pátio dos animais, preocupava-se já pela longa demora da mulher minha mãe, o que poderia ela estar a fazer quando tantos clientes ficavam à espera de serem servidos e acima de tudo por ela, a cara bonita da taberna, da albergaria, não aquela ajudante lenta e aparvalhada, mais trapalhona que uma barata doida em lixeira de festa, que três em cada cinco pedidos baralhava porque se intrometia nas conversas dos senhores e das senhoras e se metia em jogos de sedução de mãos por pernas e saias acima. Minha mãe era a pérola lustrosa entre a mobília gordurosa daquela casa, a filha que nunca tinha tido na sua presa vida, a cara e o corpo da sua infância sonhada, a sua preocupação, a sua ocupação de pensamentos enquanto o seu único sobrinho grassava por mares nunca de antes navegados. Do que encontrara não estava ela à espera, o corpo daquela rapariga dado ao mundo e ao sangue, murmurando febrilmente ele esteve aqui, ele esteve aqui, mas ele quem se no quarto somente se encontravam as duas, foi ele, a salamandra, foi ele, o espelho de bronze, ele, a enxerga ensanguentada, ele, a roupa suja de molho de carne e de vinho, aqui foi ele esteve, mas foi ela que abriu a porta trancada, que lhe cobriu o corpo ferido e nu, que lhe abraçou consolando-a do choro no quarto vazio de janelas fechadas, ninguém passaria por aquela finíssima abertura da pequena janela aberta pelo vento, ninguém senão uma brisa, uma mosca, uma formiga, nem sequer o espírito santo se fosse pomba. Consolou-a como a mãe que nunca fora, abraçou a criança que a rapariga minha mãe ainda era, disse que já vinha, que iria fechar a taberna e a albergaria para tratar dela, o que fez de imediato malgrado a clientela resmungona que ao olhar da tia trancou a língua nos últimos goles de vinho e desandou desanimada dali para fora. Mandou a ajudante para a albergaria, para o quarto dela, e seguiu para junto da minha mãe. Amparou-a dali para a albergaria, preparou uma enorme tina com água fervida e banhou-a de todo o sangue seco ao longo das pernas miúdas. De seguida levou-a para a cama e cantou-lhe como sempre quis cantar à criança que nunca tivera: “O mar enrola na areia / ninguém sabe o que ele diz / enrola, bate e desmaia / só porque se sente feliz”.
As rugas singravam pelas faces da minha tia e eu ia crescendo, dizem, naquele quente escuro, num abismo marítimo cheio de sons, barulhos e doces ares. Chocava contra grossas paredes moles, mergulhava e esperneava ao longo de um corredor arredondado, experimentando comungar a minha fome com a dela, a minha mãe, experimentando conjugar as palavras que ouvia com os meus movimentos, agarrar, torcer, espernear, prender, abraçar, sorrir, morder, sugar, podiam muito bem querer dizer nas palavras dela, a minha mãe, onde estás que me faltas, teus braços encordoados, foge-me o coração se aqui não estás, já sei o que é saudade, de noite sinto que estás aqui de meu lado, verás o filho que é teu nosso de amor ausente, sinto os teus lábios junto à minha pele meu amor, minha laranja meu doce de morder todas as horas. Isto escrevia ela todas as noites, sei-o bem, servia eu de escrivaninha noites a fio com o seu caderno sobre a minha cabeça, porque nunca cheguei a dar a volta, ouvindo o rasgar das folhas e o embeber da tinta no sulco que a pena fazia, o murmúrio das suas palavras, uma a uma, ou frases inteiras de um só gesto se lhe soltava a língua das pontas dos dedos, ouvindo o vento das folhas tão semelhante ao correr da água pelas ribeiras e para adormecer cantava-me a canção que a tia a ensinara, ou lhe lembrara.
De vez em vez trovejava, levantavam-se ondas, rugiam as marés, apertavam a gruta e tudo ficava mais salgado e não sei porquê entristecia, macambuziava, não me apetecia torcer a corda que me prendia à bóia, queria que ela parasse, partisse, esquecesse. Escutava-a dizendo porque é que nunca mais me escreveste, estarás morto, afogado, naufragado, que leviatã fez de ti Jonas, que sereia te cantou, em que concha te lapas agarrado a terras que matas, eu não quero saber de sedas, nem de ouro ou canelas, quero que te metas num burro e me entres pelas janelas, quero que abraces o que te espera; e eu só queria que aquilo parasse e tanto quis que lhe vim dizer cara a cara, abraça-me tu a mim que há nove meses estou mergulhado dentro de ti e tenho frio, querias um náufrago tem-lo aqui, aperta-me para que respire.
E assim fez. Ou assim fizeram as duas, e às vezes as três mulheres daquela casa. De manhã acordava nos braços da minha mãe, comia do seu peito e dormia. Mais tarde eram outros os braços, os da minha tia ou os da ajudante, à noite de volta aos da minha mãe. Quando me enrijeceram as pernas, já não conseguia contar quantas mãos me pegavam ao colo, quantas caras estranhas me olhavam, me sorriam, me ensalivavam as bochechas, rai’s partam aquelas pessoas todas que não podem ver uma criança, querem logo todos ser muito gentis para agradar a dona da casa, para ver se ganham um copito mais com tanta mimelice, a besuntarem-se, para além dos beiços sujos de molho de carne e vinho, de uma gordura a que chamam mimo ou carinho e que cai num grande splash no chão assim que a criança e a mãe viram costas. Por essa razão costumava fugir da taberna assim que comecei a correr. Mal me davam o pequeno-almoço escapava a todas as mãos que me queriam agarrar, deslizando pela serradura debaixo das mesas e bancos, saía pelas traseiras, passava os animais e dirigia-me para o molhe lá em baixo no Cais do Sodré e se fizesse sol mergulhava e nadava, se fosse outro o tempo corria cima a baixo ao longo do rio.
Foi num desses dias de fuga, porque quando chovia ficava em casa, que fui surpreendido com muito mais pessoas a correr para o rio do que eu e os meus amigos. Para não sermos atropelados tínhamos de acompanhar o movimento fosse ele para onde fosse. Parámos somente quando alcançámos o rio e frente a nós três gigantescas naus aportavam.

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