domingo, 13 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro

V

Não vos poderei decerto descrever a visão de tão imenso mar ao longo da viagem, nem tão pouco as maravilhas, os sustos e terrores que meu pai e seus companheiros passaram nas naus de D. Vasco da Gama. Disso disse melhor o meu contemporâneo de olho vazado, nesse seu longo poema censurado e dedicado ao rei rapaz. Mas, como sabem, os acontecimentos não foram poucos e escassos de deslumbramento. Névoas e nuvens, torres líquidas no horizonte, povos estranhos que não se levavam pelas bugigangas brilhantes que os meus conterrâneos tinham levado para a troca de ouro e pedras preciosas; animais deslumbrantes, folhas de cores garridas, milagres, doenças, mortes e esse encontro magnífico com o fim de África, com esse morro mortífero e maligno que agora, passado as trevas que o encobriam, conhecendo a sua história, domado o monstro e dobrado o cabo, se chama da boa ventura e esperança.
Falei-vos de monstro e agora lendo-me a tantos séculos de distância rir-se-ão de tamanha estupidez. Não é monstro, mas metáfora de transgressão, metonímia de dois povos, o africano e o português. Sim, agora é-o, mas não outrora. Era vivo o monstro que por lá habitava, vivo e mortal e muito espanto causou aos olhos de meu pai. Não só o seu negro e rochoso corpo entranhado naquele penedo e castigado pelas águas e pela visão da sua amada mergulhando longe do seu alcance, não. Também a sua triste história muito lhe marcou, essa história de traição e engano, de perda e de maldição. Não houve um único homem naquelas embarcações que não tenha pensado nas suas mulheres deixadas nas terras lusas e imaginado, por um instante, eles próprios agarrados a um destino que os deixa apartados dos seus amores sabendo-as livres, mergulhando nuas nas, então, claras e cristalinas águas do Tejo, do Mondego, do Douro. O baque foi completo e total, pelo menos no que toca ao meu pai. Ele, tão apaixonado e casado há tão pouquíssimo tempo, perder o seu amor? Nunca. Não suportaria, ele não tinha a força daquele titã de pedra, mesmo tendo o coração tão mole e de carne como o outro – sim, porque ele percebera que por dentro daquele corpo de pedra fria e dura palpitava o mais amolecido dos corações.
Jurou a si que nenhum mal cairia sobre o seu amor e que nada o afastaria do lado da sua mulher, depois que retornasse. Mas aguentaria ele esta distância que aumentava de dia para dia, sabendo-a, ainda por cima, entregue aos olhares e toques da gentalha que frequentava o estabelecimento da sua tia? Teria a sua jura a força necessária para que o amor não o abandonasse? O tormento que por agora passava era bem maior do que um cabo naufragante, as ondas de sonhos e da imaginação eram bem mais fortes que as que chocavam contra as paredes da embarcação. Era necessário agir.
Lembrou-se então de uma promessa que fez. Escrever, escrever-lhe, escrever a essa jovem mulher, sua esposa, seu futuro, sua terra, sua casa. Escrever, aproximá-la a si, trazê-la para perto, buscá-la para junto de si mais ainda, aninhá-la na sua enxerga naquela camarata a abarrotar de marinheiros solitários e desejosos de corpos quentes e femininos, ali, viva e sem que ninguém soubesse.
Nessa mesma noite, à luz de uma mínima vela e à sombra do seu alquebrado corpo do trabalho diário, pôs mãos à sua obra de pena em punho, uma enorme pena de albatroz colhida nessa manhã e tolhida do seu espírito enamorado.
Todos os dias, à noite, escrevia uma a duas páginas. Depois o número de epístolas foi crescendo de dia para dia. Cresciam igualmente o número de páginas por carta. Em cada tempo morto meu pai pegava na pena e escrevia desalmadamente. Em vez de ficar às vontades do ondear das vagas na embarcação, de cantar e conversar com os seus companheiros, ele e aqueloutro que já referi, que mais tarde veria o seu olho ser vazado em combate, escreviam costas contra costas (esse mesmo poeta numa noite roubou-lhe uma das suas cartas e transformou-a num belo canto, e onde um homem acostava a uma terra encontrando a sua mulher e ambos se entretinham com os fazeres do amor entre comida, bebida e jogos, logo o outro transformou numa graça de uma deusa pagã aos marinheiros portugueses, ah se isto fosse alguma vez dito!).
Em cada porto improvisado meu pai expedia as várias apaixonadas epístolas, que mais cedo chegariam à sua destinatária que ele próprio, ignorando o seu regresso.

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