sábado, 12 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro

IV

Não há muito que se diga sobre os primeiros meses de estadia da minha mãe na hospedaria da minha tia-avó. Os dias passava-os ela ajudando na cozinha, limpando a casa, servindo à mesa, tratando dos animais, quero dizer, fazendo aquilo que antes fazia a dona da casa ficando agora esta apenas a atender os clientes na taberna dando ares da sua graça cheia de bravata, porque era afinal isso que muitos homens gostavam, serem tratados como as bestas que eram, frios e duros pedaços de carne transbordando de desejos. A minha tia-avó sabia como tratá-los e pô-los na ordem, resolvendo desavenças de punhais com meia dúzia de palavras disparadas à queima-roupa e no picanço à desgarrada – quero dizer, pacíficas lutas de versos, décimas, sonetos, etc. – ela era capaz de dar avanço em cinco lances verbais, ficar por baixo e no fim voltar à tona da maralha levando a clientela ao rubro, muitos deles até ficavam literalmente ruborizados e não era de todo do vinho. Não era, portanto, uma casa para santos, frades e damas, embora muitos por lá passassem ao abrigo dos olhos dos da sua classe.
Decerto que já estarão a pensar onde pára o meu pai. Não muito longe. Rondava às escondidas as traseiras ou a cozinha espiando a futura minha mãe, quando não se encontravam a conversar até quase a aurora despontar sobre os telhados frente ao Tejo. Como era natural, tanta presença prolongada, tanto esforço partilhado, muitos sentimentos vieram à luz do dia ou da vela. Do mero cumprimento casual, veio a perduração dos seus corpos frente a frente ou de um aperto de mão. Daí as mãos procuraram novos territórios físicos, um antebraço, um cotovelo, um braço, um ombro. A desconfiança veio a ser confiança, a simpatia gosto, o encontro vontade, a vontade paixão e por fim um amor que por pouco fazia minha mãe ser despedida – não por ter havido encontro carnal entre os dois, mas porque muitas vezes chegava atrasada ao serviço e minha tia-avó não gostava.
Só que toda esta aventura não podia durar. Certo de que amava a minha futura mãe, meu pai ficou com ganas de desposá-la e para isso necessitava de dinheiro. Ora, a melhor maneira de o conseguir era inscrever-se numa expedição marítima em busca de um novo caminho para as Índias, almirantado pelo então muito pouco conhecido D. Vasco da Gama. Numa noite mais calma de gentalha bêbeda, meu pai confessou seu plano de ventura e tristeza. Ventura, pois, porque se tratava do encontro dos dois que me geraram pelas tramas dos fios dos fados, porque unir-se-iam para sempre aos olhos de Deus, porque caminhariam a par de ora avante. E também tristeza, porque mal descoberto o amor logo se aparte para longe, amor em terras distantes, corações sobre os oceânos.
Casar-se-iam quanto antes, hoje à noite, amanhã depois do canto do galo ou ao sol-pôr, nunca depois de daí a três dias, pois zarparia pelos oceânos. Minha mãe já há muito que ansiava pelo pedido. Não lhe interessava o local, campo florido de primavera ou taberna escura e nauseante, e muito menos a disposição física do pedinte, joelho por terra ou pressa de abrir pernas, desde que pedisse, que se noivasse. Estando ela pois de acordo, meu pai foi-se arranjar com o padre explicando-lhe a urgência, que melhor seria ser visto por Deus, quando morresse, casado e com família respeitando as crenças cristãs do que só entre as carcaças dos pagãos ou entre Leviatãs no fundo das águas. O padre aquiesceu fazendo notar que tanto exagero não era necessário, casá-los-ia para que a história se despachasse.
Ainda mal o galo cantara e já os dois se viam como casados frente ao padre. Fizeram a celebração em medas de feno entre animais, sem grandes galanteios e grinaldas. De alianças ficaram-lhes as palavras dirigidas um ao outro e o testemunho mudo do padre, do burro, das vacas e das galinhas. Minha tia-avó nunca nada soube da partilha de amor. Para engrandecimento da tristeza os seus corpos ficaram-lhes vedados, pois ao primeiro canto do galo entraram de rompante soldados na taberna procurando meu pai. Havia igualmente pressa na partida. Todos os inscritos teriam de estar presentes nas galés ainda antes de o nascer completo do sol, os ventos eram já favoráveis à desancoragem. Correram juntos, meu pai e minha mãe, de coração na boca. Fazia-se já grande corrupio para os lados de Algés. Engalanavam-se as últimas coisas, barris de água, carnes salgadas, bugigangas, armas. No porto ajuntavam-se famílias para a despedida, mulheres chorosas, crianças porcas escorrendo ranho, alcoviteiras, peixeiras, pedintes, carpideiras, vates, velhos, poetas, gente, gentinha e gentalha, todos à uma para ver a espuma no bordo bojudo das naus, para acenar, lançar flores, medalhas, maldições e palavras de boa-ventura. Trocavam-se apertos de mão, beijos salgados de choro e mar, abraços, o adeus português.
Meus pais apenas deram um beijo, nada mais, e um aperto, um encosto dos dois corpos, tão justo, tão a descoberto, que pareciam conhecer o corpo do outro como se tivessem nascido nele. Não havia tempo para mais e de promessa ficou apenas a do meu pai: escrever-te-ei sempre que possa, espera-me – e o mais doce junto a tanto mar – meu amor.

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