sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro

III

Não terá sido, porventura, a melhor das recepções para uma moça que chegava dos arrabaldes à grande metrópole do reino. Ainda para mais tão adolescente, habituada somente às vozes de galinhas e bestas de cargas, de pardais e outras aves canoras, das ordens dos seus progenitores, nenhuma delas sem qualquer aviso ou ameaça de morte. Poderão imaginar o terror que se apossou da pobre e inocente criatura. Como ficava calada a voz repetiu a sentença.
“Se vieste para morrer, não procures mais. Aqui ou se mata ou se morre, não me parecendo que faças a primeira, logo…”
“Não…eu…eu vim apenas à procura de trabalho. Meus pais faleceram e fiquei só, à parte a roupa que trago e este burrico não tenho mais nada. Quero trabalho.”
“É como se já estivesses morta.”
“Não, senhor, estou viva, bem vê que sim, que estou, viva.”
“Então vais ter que te despedir do teu corpo e encomendar a tua alma ao Senhor, porque o único trabalho que aqui terás, bonita como és e jovem e rija, será o teu corpo. Se queres continuar viva, deixa-te morrer, assim o teu trabalho não será a tortura que pensas que é, também terás prazer.”
A rapariga não podia crer nos seus ouvidos. Pálida, quase desfalecendo do burro abaixo, congela os seus olhos nos olhos do homem, trespassando-o, procurando congelar a sua língua enquanto aquece um coração de pedra pensando que assim a pouparia. Toda ela estremecia agora, as mãos fraquejando e desenlaçando as voltas das correias, o peito subindo e descendo em ondas arfadas, o lábio inferior tremendo e formando um beicinho de criança, a cabeça caindo sobre o seu peito ocultando lágrimas que lhe nasciam e caíam sobre o dorso do animal, que a olha estranhando a situação com uma folha de alface na boca. Que proposta mais indecente, que modos de receber quem de longe vem. Tivesse ela morrido na vez dos seus pais. Tivesse aquele maldito fogo tomado conta de si como das bruxas nas praças públicas em vez dos seus pais, dos seus queridos e mortos pais. Pensava ela que teria de haver outra forma, não podia ser assim, a sua vida não podia ficar proscrita e oferecida ao Diabo sendo ela tão nova, e mesmo velha e de muitos anos e enrugada também não, nunca faria o que o homem dizia, não, nunca.
“Há outra hipótese”, acaba por dizer o homem, “há outra hipótese se esta não te agrada. Tenho uma tia proprietária de uma albergaria lá para os lados de Santos, não muito longe daqui. Uma das suas ajudantes de cozinha caiu morta com tísica, ou lá o que era, e agora precisa de ajuda…”
“Está a mangar comigo?”
“Não, não. Queria apenas saber que tipo de mulher és e a que é que estás disposta. Agora sei-o. Vem, não te faço mal.”
“Porque haveria de confiar no senhor?”
“E porque não? Se te quisesse fazer mal já o teria feito estando esta praça tão vazia como a cabeça do burro que montas. De certeza que te disseram para não falares nem confiares em ninguém, verdade? Mas também saberás que mentir é pecado. Não há mais ninguém a quem possas recorrer, nesta cidade não conheces qualquer pessoa exceptuando eu mesmo. Forçosamente terás de confiar em mim, acreditar em mim. De qualquer modo, consegui impedir aqueles que te perseguiam de te apanharem e te assaltarem ou pior ainda.”
“Mesmo assim, porque haveria de confiar no senhor?”
Realmente, depois da sua primeira aproximação assustando a pobre rapariga, minha futura mãe, o homem, meu futuro pai, não tinha argumentos para a convencer, não fora sua tia aparecer justamente naquele momento vinda do Mercado da Ribeira sentada numa carroça. Mesmo a calhar, pensou o homem e vocês que me lêem. Mandando parar sua tia, o homem conta, depois de perguntado o que fazia naquelas horas da noite acompanhado de uma jovem rapariga, a história do seu encontro. A tia vendo que minha futura mãe se encontrava tão nervosa e chorosa, procurou acalentá-la e sossegá-la, afirmando que tudo o que o seu sobrinho dissera era a mais pura verdade, conseguindo assim convencer a minha futura mãe a ir com eles para a albergaria que ficava lá para os lados de Santos.
Após ter descarregado as suas mercadorias numa pequena cabana nas traseiras da cozinha da albergaria, e desatrelado os seus cavalos e o burro da carroça guiando-os para uma árvore onde se encontrava um monte de alfafa, a tia ajudou a minha futura mãe a acomodar-se num pequeno quarto depois de convenientemente alimentada. Disse que não havia problema, minha filha, aqui estarás tão bem como se em tua própria casa vivesses com teus pais, minha filha, poderás ficar e ajudar ou partir e procurar trabalho noutro sítio qualquer, minha filha, embora sejas bem-vinda à nossa casa.
Ficou.

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