quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro


O mar é belo no Inverno. Solitário escuro selvagem sobe mais alto na areia lambe a falésia que nunca se recusa arredonda-se cava-se abre-se ao seu desejo.
Yvette K. Centeno

E no final, o teu olhar toca nos mesmos traçados de caracteres em que o meu toca agora, e tu lês-me, e eu escrevo-te.
Jean-Luc Nancy

I

“O mar enrola na areia / ninguém sabe o que ele diz / enrola, bate e desmaia / só porque se sente feliz”. Quantas vezes me embalou a minha mãe com esta canção, quantas? Não sei dizer bem ao certo, talvez umas centenas, talvez milhares de vezes, não sei. Lembro-me da sua voz, doce, baixando aos poucos e poucos o volume, até que se condensava nas conchas dos meus ouvidos. Deixava-se lá ficar, enrolando-se e enrolando-se. Toda ela cabia nas conchas dos meus ouvidos. Acho até que ela adormecia lá dentro, enrolando-se e enrolando-se e mergulhando cada vez mais fundo, até já só escutar um zumbido e depois nada. E quando se dava esse nada ficava tudo escuro, até o mar começar a se formar muito ao longe.
Primeiro uma risca azul, que se ia prolongando na minha direcção. Depois avolumava-se, ganhava dimensões, outros tons de azul, transformava-se. Ora se alisava, ora se mexia e remexia. Na realidade ondulava-se, enrolava-se tal como a voz da minha mãe a embalar-me. Quando o seu tamanho era já imenso, quando à minha frente e ao meu redor já tudo era azul a levantar-se e a cair, então, bem à minha frente, a primeira linha parecia recuar por alguns segundos, para, de seguida, se enovelar e avançar numa cadência morna, lenta, mole. Uma outra linha formava-se por cima da outra, agora branca, e as duas iam avançando e crescendo em crescendo.
Eu fico no mesmo lugar em que inicialmente me encontrava, a ver aquela onda a crescer e a aproximar-se, em velocidade, em força, a arrebatar o meu olhar, a acelerar o batimento do meu coração, a reunir todo o azul. Quando já se descobre a poucos metros de mim, sinto uma força a puxar-me para ela vinda de trás de mim, um sopro, um vento, uma sucção. Sou tão pequeno à sua frente, tão, tão pequeno. Diria um pedaço minúsculo dela, dentro dela, ou lá em cima, uma bolha de espuma. E ela vem e vem e vem e quando chega sinto lágrimas a escorrerem dos meus olhos e era sempre já de manhã.
Ainda hoje é assim. Eu, a onda e as lágrimas. Porquê este fascínio? Essa é outra história e por essa razão peço-vos a vossa paciência.

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