quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro

II

De mim não saberei dizer muita coisa, senão que tive pai e mãe, como todos que conheço, e à parte de me lembrar da voz da minha progenitora sempre que ouço aquela canção, dela nada mais sei. Do meu pai ainda menos, exceptuando também um aspecto mínimo senão mesmo banal, se pensarmos na educação rígida e austera que vigorava no tempo dos nossos antepassados. Por ventura já terão uma ideia em mente e não estarão longe da verdade. Falo daquele olhar duro e impenetrável, que nos incute respeito e silêncio sem se proferir qualquer palavra que acompanhe esse olhar que sobre nós cai.
Por essa razão não vos poderei fazer uma descrição exemplar dos dois, não vos poderei dizer, sem recorrer à imaginação e à memória de traços de outros que cruzaram comigo e a quem prestei alguma atenção, como eles realmente foram, e muito menos fornecer-vos a complexidade dos seus humores, manias, que darão mais profundidade para além da pele. Mesmo esses aspectos roubo-os ou peço emprestados a outros e a outras histórias. Demais a mais, talvez seja melhor assim, para que não vos tire mais tempo do que o necessário, para que ouçam a história que consegui coligir a partir de dados recolhidos quando voltei à terra em que nasci.
Se isto é verdade ou se, por outro lado, apresenta as linhas que faz com que esta narração mais se assemelhe a uma lenda, permitam-me, desde já, que vos enderece as minhas mais sinceras desculpas. Pois se assim for, se, mais que verdade, isto vos soe a história de ficção, culpa não será somente da minha pessoa, mas igualmente por ter cedido à força quase mágica que o tempo exerce sobre a memória dos muitos velhos que entrevistei e que, por pouca lucidez, ou a oportunidade de ter um interlocutor com plena e total disponibilidade de atenção e audição, ou até mesmo porque as suas vidas já muito viram e ouviram e muitos véus se lhes desprenderam revelando alguns mistérios fantásticos, só por racionalismo clínico se não se lhes pode crer. Se vos conto agora, é porque necessito de partilhá-la para que também eu vos seja real.
Decorria o ano de 1494 e Lisboa era ainda uma cidade labiríntica. Os mercados espalhavam-se por todas as zonas baixas ao longo do rio Tejo. Distinguiam-se ainda os traços arquitectónicos dos povos das várias religiões, que viviam em diferentes bairros subindo as colinas, num estado de paz e harmonia de comum acordo, como o que existe entre alguns bandos de malfeitores, rufias e bandidos que, a qualquer momento, se pode desfazer. Mas naquele tempo todos tinham os olhos postos para lá do abismo que se rasga depois do horizonte, pleno de riqueza e de desconhecido, de homens novos escuros como a noite, plantas e animais aos quais ainda não tínhamos palavras para descrever e torná-las, a umas e a outros, menos fantásticos e mais próximas da verdade do grande e santo Livro. Ainda para nós é difícil crer, mesmo depois de vistas e tocadas, sem algum assombro e terror, que aos poucos e poucos se dissipa se confiarmos nas palavras do digníssimo Bispo de Hipona, confiança essa que é da mais impreterível e impugnável obrigação de todos. Contudo, nessa altura de desencobrimento da obra divina, muitas maravilhas ficavam ainda por se compreender, tais como os feitos e acontecimentos marcados pelo sinal desse antigo Anjo, outrora Glória e Luz dos olhos do Senhor e agora horror e raiz pérfida de todo o Mal, de toda a transgressão.
Dizia, portanto, que foi nesse ano e nessa mesma cidade que sucedeu a história que agora relato. Numa noite cristalina e quente de Verão, dos campos que ficam junto à Porta de Benfica, uma jovem mulher, ostentando roupas de serapilheira algo andrajosas, estaca o passo do seu jerico nessa praça do Cais do Sodré, zona já de si mal afamada por dar morada e hospitalidade a meretrizes, maganos do diabo, jovens nobres sedentos da baixa vida e do fácil negócio dos prazeres, dos jogos do mau fado; e homens duros e salgados que partem e vêm, para celebrar o retorno ou despedirem-se do chão seguro e pedirem de empréstimo a memória de um corpo para as noites que virão ou lhes cerre os ouvidos ao canto das sereias. Antes de partir já seus pais a tinham aconselhado que se afastasse e deixasse longe tais antros, mas, como adormecera, o seu burrico foi seguindo caminho, a modos como que enfeitiçado, desacelerando o seu passo somente quando não mais pôde dar passada, porque o rio assim o não lhe permitiu.
Por esse modo, a jovem mulher encontrou-se exactamente onde seus pais não a queriam. Confusa e um pouco assustada, não sabendo onde se encontrava, nem conhecendo ninguém, abafada com todo aquele cheiro de vinho, corpos suados e exsudando odores que a um leviano herege que para lá do rio, se dormisse, acordaria, esse cheiro de sangue e tripas escorrendo por valetas, de folhas de couve podre, de estrume, de serradura ensopada das mais animalescas, embora humanas, necessidades dos fundos das entranhas e da bexiga, toda essa gritaria e vozearia de diferentes tons, diferentes temperaturas de humor e línguas; a jovem mulher por pouco colapsou. Encontrou forças onde julgava não ter e guiou o seu burro por entre uma ou outra rua, até que se apeou numa escura praceta, de onde das sombras se fez ouvir uma grave voz:
“Se veio para morrer, não procure mais”.

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