terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - monólogo

4.

Era verdade, a tua cara
não me era estranha,
conhecia-a tão bem por vê-la
todos os dias junto à minha. À noite
tantas vezes, mesmo no escuro, a via
voltada para mim, enquanto tu
dormias ou eu mesma. Mas quando não
dormia, passava-te a mão pelo rosto,
acariciava-te os lábios, os teus olhos
de pálpebras cerradas. Quantas vezes
esperava pela tua expiração para eu inspirar,
aproximando a minha boca à tua. Sabia-te
os sonhos bons e maus, os teus desejos,
as tuas erecções. Habituava-me
e desabituava-me ao teu ressonar,
pregavas-me sustos quando te engasgavas
e irritavas-me quando eu para aí estava virada.
Mas não nos conhecemos
como tu descreveste. Não foi assim,
não é assim que me lembro. Tu disseste
que te apaixonaste sem nunca me teres
visto. Eu não acredito. Começámos
por nos escrever
recados quando partilhámos
uma mesma casa. Tínhamos
uma amiga em comum e eu
raramente estava lá. Na altura
dormia em casa de um casal
amigo com problemas. Só voltei
quando me fartei de os aturar e só depois
nos vimos pela primeira vez
nessa tal casa, a nossa primeira casa.
Os recados ficaram maiores, o que tinhamos
para avisar ao outro reduziu-se a nós,
ao que queriamos dizer, o que queriamos
partilhar. Iamos aos poucos
e poucos construindo uma nova casa,
uma morada e uma demora, porque aí
o tempo já era outro, era o nosso,
de aventuras e desventuras.
Depois fugiste de mim e eu persegui-te.
Dizias-te indeciso, mas eu estava ali, ali
à tua volta, não havia nada
para procurares, já me tinhas
encontrado. Então para quê fugir?
Assustava-te porventura, não era eu
afinal quem tu querias, por quem te dizias
apaixonado? E acabei por te conquistar,
mesmo a tempo pois já me preparava
para sair de ti. Foi nessa altura que descobri
que tu eras um romântico lamechas
quando, como no tempo dos nossos pais,
me pediste literalmente em namoro
em cima de um telhado ali perto do castelo
frente ao rio tejo, já meio bêbedo,
é verdade, senão nem tinhas tido a coragem
de me pedir em namoro. Entretanto
continuavas a escrever as tuas histórias
e os teus poemas em cadernos pretos.

2 comentários:

Unknown disse...

Benjamimamigo

Muitos parabéns: tens por aqui neste teu blogue textos excelentes; excelentíssimos até.

Por exemplo, este meu amor morto e o seu caderno preto é brilhante. Ainda por cima, junto ao Tejo.
É bué da fixe, como aprendi com os... meus netos.

Jornalista e escritor, ao que dizem... hahahahaha, aos 69 anos continuo a com a minha maluquice: escrever.

Na Minha Travessa decorre um PASSATEMPO/CONCURSO, com prémios e tudo. É só para saberes...

Abs

fernando machado silva disse...

caro henrique,

antes de mais, agradeço-(te)(lhe) muito o elogio e espero que cá venha(s) sempre que puder.

o "meu amor morto..." é uma espécie de romance (o que complica a leitura online), como referi na primeira posta, e é constituído por sete monólogos e seis contos (três já foram postados). espero que goste(s) dos anteriores e do que virá, bem como do resto que posto.

irei estar sempre atento, como procuro estar sempre, ao teu/seu blog e aos concursos (eheheh).

um grande abraço