domingo, 6 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

XI

Não se pode dizer que dormiu como um bebé. Isso seria mentir, porque Benjamim Machado já não era nenhum bebé. Por isso ele dormiu como um homem que matou alguém, coisa que para mim é muito difícil de explicar já que apenas matei formigas, moscas, entre outros insectos. Mas para o bem da história direi que não dormiu totalmente descansado, embora tenha adormecido de chofre. Teve sonhos, muitos que o fizeram revolver a cama e arrancar os lençóis, outros que o fizeram choramingar, suspirar e soluçar como há muito não lhe acontecia, só que lembrar-se disso tudo é que não.
Abriu os olhos já de manhã sem qualquer recordação da noite e dos dias anteriores. Apenas sabia que tinha feito alguma coisa que não devia, que não era suposto ter feito. E de repente lembrou-se que no meio daquelas arrumações todas se tinha esquecido de um corpo ainda estendido no chão da cozinha. Essa é que era essa, como é que ele iria esconder o corpo e disfarçar o cheiro que voltaria a passear-se pela casa? Teria de esperar pela noite, claro, e até lá andaria com um pano húmido à volta do nariz e da boca e dentro do possível evitar entrar na cozinha. De um salto saiu da cama e aproximou-se da porta que dava para a sala e de olhos fechados snifou o ar. Estranho. Snifou uma vez mais. Muito estranho mesmo. Entrou para dentro da sala e continuou como um cão a cheirar o ar até chegar à cozinha e continuando de olhos fechados… Estranho, muito mas muito estranho mesmo. O ar não estava infecto com morte e podridão mas com sabão azul e branco ou sabão macaco ou lá o que era. Cheirava a higiene, a asséptico, a quem tinha passado um dia inteiro a limpar a casa e isso era apenas o princípio. Na cozinha não havia qualquer corpo, a musa tinha desaparecido, nem o desenho branco do contorno lá se encontrava (até que se lembrou que quem faz isso é a polícia e não o morto para se lembrar da sua posição no caso de se sentir preso de movimentos ou com comichões).
Terá tudo sido um sonho? Será que nunca existiu uma musa? E como ele poderia explicar a quantidade de poemas, contos, romances, ensaios que escreveu? Saiu tudo da sua cabeça? E se ela andasse por aí? Se ela não tivesse sido estrangulada pelas suas próprias mãos? E se o estrangulamento tivesse sido apenas aquele conto que estivera a escrever antes sobre uma cerejeira fora de horas? Nesse caso procurá-la-ia. Mas alguma coisa não estava bem. É que Benjamim Machado continuava com a sensação de ter morto uma pessoa e reparou que a porta da marquise que dava para o pátio estava aberta. Terão os gatos levado o corpo lá para fora e começado a comer? Gatos têm essa força? Saiu. Nada. Apenas turras nas pernas e miadelas de fome. Terá deixado a porta aberta quando andou nas limpezas e depois esquecido de fechá-la? Entraram cá dentro e levaram o corpo. Só pode ser isso. E agora, o que é que eu faço?
Benjamim entrou a correr para dentro de casa com uma nova sensação a revolver-lhe o estômago. Diabos, merda e eu sei lá mais o quê começaram a sair-lhe da boca. Desesperava-se, angustiava-se, revoltava-se e da arrumação já nada mais existia. Estava tudo perdido para ele.
Passou o dia nessa agitação. Revolvia as lembranças dos últimos dias, das suas últimas acções. Tudo foi real, disso não havia dúvidas. Ia para o quarto, deitava-se. Fechava os olhos, esperava alguns minutos, horas, levantava-se, dirigia-se para a cozinha e nada. Perguntava-se, questionava-se e tinha a certeza que tinha morto a mulher, mas ela, onde é que ela estava, onde o seu corpo, onde? E de novo no quarto, entre a agitação dos lençóis e das ideias, adormeceu.

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