sábado, 5 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

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Aquele trecho de qualquer maneira, mais do que o cheiro que não circulava de todo pela casa, despertou-o. Até então não se tinha apercebido da dimensão do seu gesto. Não foi uma escalada de um corpo sobre outro maior, quase inalcançável, mas antes de uma mão, que ele julgava inocente, pelo corpo de uma mulher, igualmente inocente. Era ignóbil. Tinha descido razoavelmente muito, para não dizer que deu uma queda enorme, na escala dos comportamentos humanos. “O que é que eu fiz, o que é que eu fiz?”, não parava de se dizer a si entrando e saindo da cozinha para a sala ou para a marquise.
Como que tomado por um espírito qualquer, e não o da musa, uma vez que jazia morta no chão, um espírito desses antigos e romanos, os tais Lares, Benjamim Machado pegou na sua vassoura e varreu a casa toda, depois pegou na esfregona e num balde e minuciosamente lavou todas as divisões da sua pequena habitação, com um pano desempoeirou prateleiras e nichos de todos os móveis que tinha até que terminou na cozinha e limpou, escovou, esfregou, poliu, lixiviou o que havia para tal. Benjamim Machado estava desvairado, não estava em si, estava fora de si. Tomado de assalto por um vazio, pelo seu próprio vazio, não olhava para nada e executava. Tudo aquilo durou o dia inteiro até que se pudesse respirar livremente naquela casa uma vez mais. Não queria nenhum cheiro nauseante como o que anteriormente sentira quando despertara do seu crime. Estava de rastos e não haviam restos de que alguma coisa sucedera ali, isso satisfazia-o, acabando por adormecer estirado na cama com a mesma roupa de há três dias.

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