segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

XII

Despertou terrivelmente abatido, desgastado, pesado. Arrastou-se para a casa de banho, lavou-se. Arrastou-se para o quarto e vestiu-se e partiu sem o seu pequeno-almoço para a cidade. Tinha tomado uma decisão. Entregar-se-ia à polícia hoje mesmo. Faria um relato o mais fidedigno possível dos acontecimentos. Se necessário contaria tudo desde o princípio, começando há seis anos atrás. Não deixaria nada em falta e pediria que o prendessem, não se poderia deixar à solta um assassino.
Chegado à cidade estacionou a bicicleta na Praça do Lagrido, onde era seu costume e partiu para a esquadra da polícia. Subiu a Rua das Lembranças até ao topo, até alcançar o Falso Templo da Deusa. A esquadra era já ali ao pé, apenas cinquenta metros. Só não sabia como fazer o que tinha imposto a si mesmo. Precisava de tempo para pensar, para pôr as suas ideias em ordem, ganhar coragem. O melhor seria tomar um café ali mesmo naquela esplanada do jardim perto da esquadra. E assim fez.
Pediu um café cheio e sentou-se enrolando um cigarro. Tentava parecer o mais calmo possível, o mais anónimo e anódino possível, ninguém diria que ali se sentava um criminoso, um homicida, um assassino de musas. Entre baforadas procurava a melhor maneira de dizer o sucedido. Não seria difícil afirmar a um polícia “olhe, eu matei uma pessoa”, não, isso não apresentava dificuldade nenhuma, nem mesmo relatar todo o procedimento com todos os pormenores, cheiros, tactos, pesos, gestos, olhares, sensações e sentimentos, a disposição do espaço e dos corpos nesse espaço. Mas como provar um crime de homicídio em que faltava um corpo, em que a prova irrefutável, a própria substância que dava forma ao crime, faltava, como que por magia. Aí de certeza que entrariam os processos obscuros de desvendamento da verdade, que tanto se fazem ouvir e ver em histórias e filmes, com interrogatórios infindáveis procurando o deslize do argumento, o choque de mãos e bastões nos moles das carnes sem deixar provas disso. Ele só tinha que pedir que acreditassem na sua palavra aí onde não havia prova de verdade, queremos dizer, na falta do corpo.
Estava Benjamim Machado nesse ínterim quando, umas mesas mais à frente, se senta uma mulher pedindo um café. Benjamim nem prestou muita atenção, tão enrodilhado estava em si e no seu crime, o que não impediu a aproximação dessa mulher por trás e tocar-lhe no ombro no exacto momento em que, tendo já pago a sua conta, Benjamim se encaminhava para a esquadra.
“Desculpe, você não é Benjamim Machado? O escritor e poeta Benjamim Machado?”
Benjamim não sabia o que responder. Seria ele ainda Benjamim Machado, escritor e poeta? Quem era ele agora, perdendo-se nuns olhos grandes e azuis que o olhavam com doçura e numa voz suave e levemente rouca que saía moldada por uns lábios inexplicáveis.
“Desculpe?”
“Perguntei-lhe se era Benjamim Machado?”
“Não, não, está enganada, chamo-me… Fernando… Machado Silva.”
“Oh, desculpe”
“Não faz mal, confundem-me muitas vezes com esse senhor.”
“É que de facto é muito parecido…”
“…”
“Não me está a enganar, pois não? Não está a inventar que é outra pessoa apenas para evitar conversar com alguém que gosta do seu trabalho?”
“Não, não, de todo. É verdade que também escrevo, mas eu e esse tal Benjamim Machado não temos nada em comum e mesmo se fosse esse tal Benjamim Machado não teria tempo suficiente para a enganar e mentir-lhe, quero dizer, você nem me deu tempo de respirar…”
“Desculpe… eu nem costumo fazer isto, chegar ao pé de uma pessoa e começar a despejar perguntas para cima dela.”
“Como já lhe disse, não há problema, esses acidentes acontecem e ninguém tem a culpa.”
“Acidentes?”
“Queria dizer esses… acasos”
“Sim, sim, acasos… bom… desculpe mais uma vez. Bom dia.”
“Bom dia para si também.”
Também a mulher tinha pago e bebido o café. Voltou as costas a Benjamim e dirigiu-se para o museu da cidade ligeiramente consternada com a situação, não era todos os dias que ela abordava alguém desprevenidamente só porque tinha a impressão que conhecia essa pessoa. Ele ficou a vê-la ir-se embora, igualmente confuso e ligeiramente indisposto por ter mentido àquela bela mulher, a única que realmente lhe prestou atenção, a única que sinceramente lhe tocou, lhe falou. Benjamim acompanhou-a com o olhar, segui-lhe os passos. Também ele nunca tinha prestado atenção a uma mulher, o modo como ela se balançava pelas ancas, como um cabelo rasando os ombros se ondeia, como é batido pelo vento fazendo a vez de folhas nas copas das árvores, pelo menos não como desta vez. A meio do caminho a mulher parou por momentos sem se voltar, como se tivesse esquecido qualquer coisa e Benjamim parou com ela, e nesse passo de dança o seu coração emergiu do posto de vigilância e suspeita onde o tinha deixado desde que aquela outra morrera. Espera, não vás hoje trabalhar, hoje não.
Como se tivesse ouvido de longe aquelas palavras de Benjamim Machado, a cabeça da mulher pendeu para o lado e balançou-se em concordo, voltando o seu corpo para o lado, olhando para trás. Benjamim reparando que ela se virara desata a correr em sua direcção parando apenas quando se encontrava a poucos centímetros da mulher. Sem sequer estremecer a mulher sorria.
“Desculpa mais uma vez”, disse Benjamim, “desculpa ter-te mentido há pouco.”
“Eu sei, não faz mal, talvez eu também ter-te-ia mentido se todos os dias me incomodassem com estas perguntas e pedidos. Mas agora não importa, pois não Fernando?”
“Claro que não e ainda bem que me percebes. Escusas portanto de me chamar Fernando, podes tratar-me pelo meu nome.”
“O outro não me interessa. Disseste que te chamavas Fernando e esse é o nome pelo qual te vou chamar.”
“Nesse caso, não te pergunto o teu e chamar-te-ei um nome pequeno de cinco letras.”
“É justo. Faz sentido e não estás longe da verdade.”
“Ainda bem.”
“…”
“Sabes, a tua cara não me é estranha.”
“É justo, faz sentido e não estás longe da verdade.”

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