domingo, 30 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

IV

Quando Benjamim Machado acordou, pouco ou nada se lembrava pelo que tinha passado. Tinha uma vaga ideia, um tanto nublada, esborratada, de ter jantado no Cabana e de ter bebido bastante e de uma mulher, ou a ideia de uma mulher, já que não se recordava do seu rosto, das suas feições, do seu corpo. Recordava-se de algumas palavras soltas, sem nexo, porque não as conseguia localizar ou colá-las numa única frase. E de ter percorrido, sem razão aparente, muitos bares da cidade e beber, beber. Sítios onde nunca antes tinha entrado, lá esteve ele encostado nalguma parede de copo na mão à procura de uma mulher que não conseguia definir. “Talvez”, disse Benjamim Machado, “talvez devesse apontar no caderno esta noite que passou… mas não, não vale a pena, não te decidiste ontem que tudo tinha acabado para ti? Então se acabou segue a tua vida”.
Era um dia normal para Benjamim Machado, com a sua normal rotina. Preparou o seu pequeno-almoço, deu comida aos gatos esfomeados e sentou-se na cadeira do pátio. Olhou para o caderno e disse-lhe “adeus, até mais não” com o olhar. E assim que se despediu e começou a beber o leite descontraidamente olhando o campo e fechando os olhos para apreciar com os outros seus sentidos aquela manhã quente, desenhou-se na sua cabeça aquela mulher. Partes do seu corpo, o seu cabelo, as suas mãos, as suas orelhas, o seu nariz, a sua boca, os seus olhos surgiam em diferentes ritmos, uns mais precisos, outros esborratados, uns lentamente demorando-se a se definirem, outros em sobressaltos, em quedas livres, rápidos, esboçados. E nesse vaivém de imagens do corpo daquela mulher, a mão direita de Benjamim parecia que ganhava vida, arrastando-se no tampo da mesa, pegando na caneta esferográfica, abrindo o caderno e iniciando uma viagem pelas linhas e folhas. Benjamim não tinha o hábito de olhar para as suas mãos, a não ser que estivesse a escrever, e estranhamente não se apercebeu do que se estava a passar. Numa mão sentia a caneca fria que levava à boca e a outra pensava ele que estava descansadamente pousada na sua coxa e apenas se apercebeu de que alguma coisa estava errada quando ouviu uma folha a ser virada. Pensou primeiro que tinha sido o vento, uma brisa que lhe tivesse aberto o caderno e que dançasse pelas folhas de papel, até que começou, aos poucos e poucos, a tomar consciência de que era a sua mão que dançava, e não o vento nem uma brisa, no papel.
Olhou para a mão e a mão parou. Assim que a sua mão se pôs em cima do caderno, Benjamim Machado começou entredentes a despejar palavras e palavras e por pouco se ia engasgando, porque antes de parar a sua mão tinha tragado um bom bocado de leite. Levou a sua mão à boca para impedir as palavras de saírem, mas ao evitar uma das suas mãos a escrever e ao mesmo tempo a sua boca de falar, foi a vez da sua mão esquerda que segurava a caneca escrever no ar com o leite a ser espalhado por tudo o que era sítio. Benjamim começou a ficar assustado, não percebia o que se estava a passar, estaria ele possuído? Benjamim riscou automaticamente esse argumento da sua cabeça, “no máximo estou ainda a dormir, só isso” dizia ele. E tudo parou.
Os gatos lambiam o leite que lhe escorria pelas pernas abaixo até aos pés. Respirou fundo e entrou dentro de casa. “Não, não estou a dormir, se calhar tenho epilepsia e isto foi o princípio de um ataque, ou então foi da noite passada e é apenas o meu corpo a encontrar uma forma estranha de expulsar algum álcool que ainda resta a percorrer pelas minhas veias”, dizia Benjamim Machado despindo-se e entrando na banheira para tomar um duche. Mas, uma vez debaixo de água morna, deixando-se relaxar sentindo o quente no pescoço e encostando a cabeça ao braço livre que se apoiava na parede, fechou os olhos e de novo lhe vieram pedaços do corpo daquela mulher, como pequenas fotografias, pequenas polaróides e tudo recomeçou. Estando as duas mãos de certo modo ocupadas, uma segurando o chuveiro, a outra na parede, a sua boca começou a trabalhar dizendo palavras atrás de palavras até se aperceber do que se passava. Num sobressalto, a mão que estava na parede tapa a boca abafando a sua voz impedindo qualquer som de ser proferido, mas Benjamim já se tinha esquecido do que se tinha passado no pátio, isto é, ou se pára tudo ou não, e mal se deixou de ouvir a sua voz a mão que segurava o chuveiro começou a escrever com água nas paredes da casa de banho, na cortina de plástico, na janela, nas toalhas que o iriam secar, em todo o lado. “Oh merda, só me faltava mais esta, agora tenho que limpar tudo”.
Tudo quanto Benjamim fizesse acontecia-lhe a mesma coisa. Quando tentou secar a água na casa de banho ele e a esfregona escreveram o secar da água, quando tentou preparar o seu almoço por pouco se ia matando ao impedir a faca de continuar a lascar a mesa da cozinha, ia partindo uns quantos dentes a lavá-los, quando tentou ligar para o seu emprego para dizer que não iria trabalhar, se não se tivesse controlado mesmo muito, tinha gasto todo o seu dinheiro em chamadas internacionais. Não havia nada que fizesse que o não pusesse a escrever. Benjamim Machado estava realmente assustado, tinha medo de sair de casa, o que os outros pensariam daquilo, e se ele não conseguisse evitar, tomá-lo-iam por doido, de certeza, um doido varrido, fechá-lo-iam num hospício e bye bye Benjamim Machado. Fechou-se no quarto todo às escuras e tentou pensar bem naquilo:
“Já percebi que isto não é um sonho, nem é o meu corpo a expulsar o álcool, nem epilepsia. A causa disto só pode ter sido aquela mulher da noite passada, só pode. Ela mais aquelas palavras, «eu sei qual é o teu desejo, la la la la la». Mas ela nem sequer existe, ninguém a tinha visto a não ser eu e eu perguntei às pessoas e ninguém a viu, por isso ela não existe. Tudo não passou de ilusão. Mas se foi ilusão isto não pode ser real e está a ser real. Se foi ela então como pode ter sido ela. Mas faz sentido que tenha sido ela, só pode. Ela não disse que me conhecia, que sabia o que eu queria, não me disse que eu a amaria, e a verdade é que não a consigo tirar da minha cabeça. E se fôr isso… e se ela fôr…claro é óbvio, claro, claro, ela é uma…”.

Sem comentários: