segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

V

Benjamim Machado sabia o que tinha de fazer, agora tinha a certeza absoluta que lhe tinham concedido o destino que tanto desejava. Levantou-se da cama de um salto e correu para o pátio. Sentou-se na cadeira em frente da mesa de madeira, abriu o caderno, pegou na caneta e deixou as palavras começarem a correr. Em poucas horas tinha preenchido um caderno inteiro e não tinha mais nenhum em casa. Voltou para dentro e procurou em todos os móveis folhas em branco soltas, fotocópias que lhe pudessem servir de rascunho. Formou vários montes de papéis que lhe serviriam para o que desse e viesse, recibos, talões, contas da luz e da água, arrancou folhas em branco dos rostos e contrarostos de livros, papel higiénico, eu sei lá, juntou tudo debaixo do seu braço e saiu de novo para fora. Nos bolsos levou quantas canetas e lápis podia e encontrasse. Sentado na cadeira foi escrevendo e escrevendo e escrevendo, tornando a sua letra cada vez mais minúscula para utilizar todos os espaços disponíveis e visíveis.
Rebentavam-se-lhe cargas de canetas nas mãos e ele não se importava, escrevia com a tinta que lhe esborratava os dedos. Doíam-lhe as mãos, as articulações dos dedos. Cresciam-lhe calos e dos calos outros mais. Parava apenas para abanar as mãos e enrolar cigarros ou acender os que se lhe apagavam nos lábios, pendidos pelo esquecimento, pelo furor, pela inventividade, pela pressa de não deixar nada em claro, para trás. Por fim, o corpo disse-lhe que por hoje já chegava, que eram horas de descansar e comer para recuperar forças, assim como assim as palavras já não lhe fugiriam. A muito custo deu por terminada a sessão e dirigiu-se para a cozinha a fim de preparar qualquer coisa para comer. Arranjou qualquer coisa rápida e simples, uma coisa que compensasse o esforço e o recompusesse, que lhe desse ainda algumas forças para continuar se assim quisesse, se assim determinasse. Mas estava demasiado cansado para continuar. Pensou apenas, enquanto bebia café e fumava um cigarro, que deveria dedicar aquelas folhas com poemas, contos, novelas àquela mulher: à minha musa, apontou ele umas vezes no topo, outras no fim das páginas; e foi dormir.

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