quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - monólogo

3.

Vou lá fora até ao pátio e não estás lá,
nem o sol. Lá fora
apenas os gatos, com quem não posso
ficar, a mesa velha comida pelos fungos
de tanta chuva, a chávena colada quase seca
e o teu caderno preto.
Não sei porquê, mas assim que cheguei
a casa, deixei-o lá. Talvez para me lembrar
melhor de ti. Tu que tantas vezes te sentavas
ali só para não me acordar, só
para me deixares
dormir mais um pouco. Sempre quis tanto
uma árvore de fruto no nosso quintal
à frente de casa, ou no pátio lá atrás.
Uma que rebente com os nossos sentidos, sabes,
dessas que, como disseste, fazem de relógio
da natureza, que se despem e ficam nuas,
que se vão vestindo aos poucos
de pequenos rebentos coloridos
e se infiltram pelos nossos narizes
fazendo-nos espirrar, rebentos esses
que crescem ao sol sem metáforas
como dizia o teu amigo, que podemos colher,
guardar, cheirar, comer. Eu queria
uma árvore de fruto e deste-me
um conto, uma versão distorcida,
uma ficção, uma mentira que escreveste
no teu caderno preto com toda a verdade
que te era possível naquele momento.
Sei que não mentias quando escrevias,
que eras verdadeiro para a história
que escrevias, só que
não me chega ficar apenas
com o teu caderno preto. Não me chega,
não é suficiente
a tua letra, não és tu.
Mas, sabes o que me custa mais?
Mais do que tu teres partido?
É esta casa vazia sem estar, vazia
simplesmente por não estares ali
na cama, na cozinha, na casa-de-banho e
nunca mais lá fora com os gatos.
Custa-me saber que vou estar sozinha
com a certeza de não mais te ver
quando chego do trabalho, que te vou ver
em todas os objectos, no pó
que se arrasta pelos cantos,
sem uma única voz de boas-vindas
nem daquela outra, minúscula, voz
da criança que tanto desejávamos ter.
Essa de quem tu falas aqui e ali, que tive
e que não queria e me recusei a matar,
que seria o nosso benjamim.

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