quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

haven’t had a dream / in a long time / see the luck I’ve had / could make a good man turn bad // but please, please, please / let me, let me, let me / let me get what i want / this time
The Smiths

I

“A primeira frase é sempre difícil de se agarrar”, pensou Benjamim Machado naquela manhã de Março no seu pátio frente à cidade velha. “A primeira frase é sempre difícil de se agarrar, mas para mim já não. O problema é não conseguir terminar e dar por acabada qualquer coisa que comece e não parar de escrever. E mal ponho aquilo que se parece com um ponto final outra coisa começa a surgir noutra folha de papel”.
Ia dizendo isto enquanto enrolava um cigarro de Amber Leaf. Todos os dias, quando acordava, preparava minuciosamente o seu pequeno-almoço: um galão frio de quase meio litro, acompanhado logo de seguida por um café simples e um cigarro. Depois dirigia-se para o pátio a fim de despertar com toda a paisagem e sol. Lá fora, numa tosca mesa de madeira cheia de bolor nos pés, devido ao rigoroso inverno que tinha passado, esperava-o sempre um caderno preto e uma caneta esferográfica. Isto acontecia todos os dias, sem quaisquer alterações: sair da cama, calçar umas pantufas, entrar na cozinha, preparar o pequeno-almoço e passar para o pátio.
Alguns anos atrás, todo este procedimento não passava de uma rotina despreocupada. Tinha à sua frente todo um futuro por vir, sem obrigações, mergulhado na paisagem quase urbana, porque Benjamim Machado morava na periferia de uma cidade antiga rodeada por um campo verde e silvestre onde, por vezes, cavalos e ovelhas pastavam livremente. Muitas vezes, como agora, no intervalo de uma vírgula, Benjamim Machado ficava só a observá-los, o tempo suficiente até que outra frase brotasse na estreita linha, o que era um gesto imediato.
Mas antes deste dia de Março, em que começou a avaliar o seu dia-a-dia, sentava-se à mesa e ficava a olhar com o caderno preto aberto de par em par com a caneta na mão e esperava. Esperava que aquela primeira frase surgisse. Não queria uma palavra pequena que se colasse a outra e depois a outra e daí em diante até construir a frase que precisasse. Porque ele não queria uma frase, não. Não queria. Precisava, esta era a palavra certa. Precisava dela, pensou ele, precisava de uma frase para que aquela rotina não fosse somente uma mania. E esperava, esperava, esperava porque se aquela primeira frase não agarrasse logo à primeira aquele que estivesse a ler, então o melhor seria fechar o livro e não ler mais. Benjamim Machado fez dessa sentença o seu mote. Por isso, a primeira frase tinha de ser mágica, tinha que deslumbrar, criar um vórtice e fazer o leitor cair, mergulhar em queda livre, à volta e à volta nas frases seguintes. Tinha de embriagar, não deixar o livro fugir, escapar-se das mãos.
E o que Benjamim Machado sofria com isso naquela altura. Ficava horas e horas agarrado à caneta, de caderno aberto com as linhas prontas a serem mascarradas de tinta com letra minúscula, pequenina pequenina. E quando não sentia nada, quando nada vinha à cabeça, apagava o cigarro e punha mãos à obra e escrevia. Fosse o que fosse, escrevia. Mas logo logo riscava porque tudo era demasiado fabricado, demasiado preparado, falso, mental, diziam-lhe alguns amigos, demasiado escolhido e angustiava-se, porque nunca iria conseguir ser aquilo que queria ser, um grande escritor, o maior poeta de todos os tempos.
Lembrava-se constantemente, nesses momentos em que nada saía (e nunca nada antes lhe saía), quando leu de facto o seu primeiro livro. O prazer que sentiu foi inimaginável. Uma coisa que ele nunca conseguiu realmente explicar a si mesmo. Mas a partir daí foi lendo e lendo livros atrás de livros, sempre atento aos pequenos prefácios biográficos que acompanhavam os romances e volumes de poesia e lhe davam a conhecer os escritores e poetas vivos e mortos, mas principalmente os mortos, “porque a morte”, pensava Benjamim Machado, “a morte revive as palavras e o poeta. A morte dá a conhecer a história magnífica das pequenas e ordinárias vidas”. Por isso ele queria escrever, fazer com que a sua vida fosse um momento fulgurante que espantasse e fizesse sonhar como os outros o faziam sonhar. “A História”, e Benjamim Machado pensava-a sempre em maiúscula, “terá o meu nome e será outra”. Mas Benjamim Machado sabia que só por isso, não fazer história mas a História ser o seu nome, nunca, mas nunca, conseguiria escrever.
Até que há uns anos atrás, impaciente com tanta espera, desesperado com tanta lentidão imaginativa, lhe aconteceu uma coisa espantosa, uma coisa mágica como só acontecem nos livros fantásticos ou nos filmes. Tinha, como era seu costume, despertado rotineiramente de manhã e ficou, eu sei lá, umas boas horas sentado à mesa de caneta em punho e o caderno por desbravar. Viu os cavalos e as ovelhas pastarem e partirem, viu miúdos e miúdas irem para a escola e saírem em algazarra como se sai sempre depois das aulas quando somos pequenos, viu as borboletas transformarem-se em mosquitos e traças, os pardais em andorinhas e estas em morcegos, enfim, viu o rodar da Terra à volta do Sol e Vénus a brilhar e a Lua a começar a ser iluminada. Durante aquele tempo caneta e mão ficaram suspensas, o cigarro apagou-se-lhe nos lábios, o café arrefeceu. Apercebeu-se que nunca seria o escritor ou poeta que sonhava. O seu destino foi-lhe proscrito, adiado, proibido e pensou “Sou um anónimo”.

Sem comentários: