sábado, 15 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Uma cereja em Setembro


“inclino-me de novo para o pano deste século / recomeço a bordar ou a dormir / tanto faz / sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite / a felicidade”
Al berto

I

Ele veio dar à costa naquela tarde em que um dos funcionários da cidade me disse para não nos aproximarmos da orla marítima. Eu tinha mantido a minha palavra às autoridades, porque sempre cumpri aquilo que me diziam para fazer. A autoridade e os idosos são sempre para serem respeitados, já dizia a minha defunta mãe, tenha paz a sua alma ao lado dos anjos e todos os santos à direita de Cristo nosso Senhor. Recolhi toda a minha roupa e enxoval que secava ao vento desde o dia passado e prostrei-me à janela bebendo um chá de camomila, que pelo que sei sempre acalma os nervos. Os dias de chuva torrencial deixavam-me nos píncaros do nervosismo, toda aquela electricidade mexia comigo, já desde nova era assim. Sempre tive medo das tempestades, dos relâmpagos e dos trovões. É Deus nosso senhor que está irado connosco e está a punir-nos pela nossa má conduta, mas de que mal me está ele a castigar, pensava eu entre golos sorvidos para não queimar a língua. Lavei a roupa, limpei a casa de toda a sujidade, areei os talheres de prata que estão na nossa família desde os tempos áureos deste país, troquei os lençóis imundos que tresandavam a pecado feminino, mudei os meus panos, banhei-me e pus unguento para purificar-me. Encomendei todas as almas à Santa e virginal Mãe antes de encomendar a minha. Estou limpa Senhor, aqui não vigora o mal, o meu corpo e o meu lar são a Sua Morada. Mas a sua ira caiu na mesma sobre esta terra. A minha horta foi sendo lavada pela Sua mão enquanto o chá me aquecia, protegida por trás da janela.
Quando já mal conseguia ver para além das gotas que escorriam aos milhares pelo vidro, fui sentar-me no banco onde minha mãe se deixava ficar, já completamente cega pela idade, ao lado da salamandra. Tinha-me decidido a terminar a renda de bilros que começara no dia em que minha mãe passara do banco para a enxerga, apoiada pelo meu braço e por aquela cana que eu lhe arranjara à falta de uma bengala. Antes de se deitar no seu leito, eu julgava que seria apenas para aquela tarde, a cana partiu-se e então soube que não mais se levantaria, como sabemos uma coisa que ninguém nos disse, e fechei os olhos. Passei os dias seguintes a começar aquela trama de fios ao seu lado, sem deixar escapar sequer uma lágrima porque esses não eram tempos de lamentações. Não vertas nunca uma lágrima a não ser pelo nosso Senhor Jesus Cristo que morreu por nós, era o que costumava sair daquela boca esfarrapada da minha mãe, já sem dentes, virada para dentro, sem lábios. Ela própria nunca chorou, pelo menos que me lembre. Nem mesmo no dia em que recebeu as notícias da morte dos seus filhos e de seu marido, nas mãos de uma guerra lá longe para além deste oceâno em frente da nossa humilde casa.
Foi no ano de mil oitocentos e cinquenta e três de nosso senhor. A minha querida mãe, de joelhos, arrancava ervas daninhas de entre as cenouras, alfaces e couves que por lá havia na horta atrás de casa. Ela costumava acordar cedo, antes dos galos anunciarem a aurora, e os raios de sol filtravam-se pelas janelas da cozinha caindo em cheio nas caçarolas tisnadas no lume de chão. Depois dirigia-se para a soleira da porta à espera da surpresa de seu marido e de seus adorados filhos. Deixava-se ficar por lá até ao terceiro canto do galo, como as negações de Pedro. Mas ninguém vinha. O meu pai tinha partido, com os seus filhos, logo a seguir à revolta da Maria da Fonte, concebendo-me e largando para outros portos como um verdadeiro marinheiro. Do meu pai tenho apenas um retrato pintado no medalhão que minha mãe trazia ao peito e que segurava com a mão esquerda olhando as dunas. Eu por outro lado sempre gostei de ver a linha do mar. Tinha uns olhos duros, frios, azuis, uma cara afilada que as suíças lhe davam um ar mais austero que o de um mártir. Minha mãe dizia-me que eu era muito parecida com ele, o mesmo olhar azul de inverno e sempre calada como se ocultasse um segredo ou soubesse alguma coisa que mais ninguém saberia. Mas não, nunca guardei nenhum segredo, nem nunca soube nada para além das notícias que descobríamos quando nos deslocávamos à cidade uma vez por mês. Naquele dia de mil oitocentos e cinquenta e três, ao contrário do que era normal, a notícia veio ter connosco. A minha mãe lá estava a tratar da horta e eu encontrava-me sentada na areia ao lado da casa. Acho que brincava com alguma coisa quando a minha atenção foi desviada por um cavaleiro que atravessava a linha da beira-mar a toda a brida. A poucos metros da nossa casa, cavaleiro e cavalo estacaram passo e o homem olhou-me comiserado. Desconhecia a razão daquele olhar, mas desconfiei logo de alguma coisa quando minha mãe largou tudo e acorreu ao lado da casa onde nos encontrávamos, cavaleiro e eu. Num só movimento pegou-me ao colo sem mais delongas, tal como minha mãe pegava numa galinha para ser decapitada. O cavaleiro largou as rédeas do cavalo e levou a mão para o interior da casaca que trajava. Minha mãe apertava-me junto ao peito, colando-me a cara ao medalhão. O cavaleiro, num segundo, transformou-se em mensageiro real e estendia-lhe uma carta lacrada com um brasão em efígie. Nós demos um passo atrás enquanto ele recolhia ligeiramente o braço estendido. Virámos costas ao mensageiro e minha mãe colocou-me de volta no chão. Vai para casa. Parecia que envelhecia em cada palavra dita. Vai para casa. Empurrava-me suavemente as costas. Vai, estou a dizer-te. Eu corri dali para fora, escondendo-me por trás do monte de lenha que ficava logo a seguir à esquina da casa no lado das traseiras.
“Que me quer?”
“Trago-vos notícias de vosso cônjuge.”
“Isso bem vejo. São boas? Quando retorna ele dessa malfadada guerra que não é nossa?”
“Sabeis que vos poderia prender por ofensa para com os desejos reais? Mas não o farei. Aqui tendes missiva de vosso esposo.”
“Dê-ma cá.”
Abre a carta sem conseguir ocultar a ansiedade de saber novas do seu guerreiro. Mas rapidamente tudo lhe cai por terra, tal como o império do sul iria fenecer anos mais tarde a régua e esquadro à luz de um pôr-do-sol cor-de-rosa. Sem perder a calma, sem mesmo verter uma lágrima, aquela mulher redobrou a carta e guardou-a junto aos seus seios. Agradeceu a celeridade com que foi entregue a má-nova e virou costas ao mensageiro sem lhe oferecer a hospitalidade de que era costume. Corri para dentro da cozinha e espreitei pela janela colando a cara de encontro ao vidro. Minha mãe ficou envolvida numa névoa enquanto continuava o seu lavor. Depois dirigiu-se a um barranco perto do galinheiro e voltou à horta. Trazia uma mão fechada. Com a mão livre abriu uma cova e depositou qualquer coisa que não consegui entender o que era. No fim do trabalho voltou para dentro de casa. Não me dirigiu uma única palavra ao longo daquele dia, até ao anoitecer quando me colocou no pescoço o seu medalhão. Naquela noite vi pela primeira vez a cara do meu pai e no dia seguinte minha mãe foi regularmente perdendo a vista até à escuridão total.
Se de meu pai fiquei com os olhos e o silêncio, de minha mãe herdei a postura austera e seca de lágrimas e uma renda que nunca mais acaba. E desde aquele triste mensageiro mais ninguém fez escala à minha porta. Daqui partiram o meu pai, os irmãos e minha mãe, a única pessoa que realmente conheci. Nos seus últimos dias de cama, minha mãe chamava-me de Penélope e nunca cheguei realmente a saber porquê. Até ter encontrado um livro numa estante da nossa sala, quando arejava a casa após a sua largada para o reino do senhor. O livro velho e usado estava assinado com o nome de meu pai, o mesmo do autor. Aliás, os nomes dos meus irmãos constavam da lista de personagens do dito livro de aventuras. Embora também nunca os tenha visto e conhecido nos meus vinte e cinco anos de existência, tinha a lembrança dos seus nomes porque minha mãe nas suas conversas de mercado, onde vendia alguns legumes e comprava outros víveres que necessitávamos, coisa que deixei por completo de fazer, e nas suas orações nocturnas, os dizia cheia de orgulho. Minha mãe chamava-me de Penélope, porque estava sempre ali de seu lado a fazer e a desmanchar a renda naquele quarto escuro, já que estando ela cega nunca me lembrava de alumiá-lo. E acho também porque lhe parecia que eu esperava o retorno de alguém. Mas nunca ninguém veio, não. Nunca ninguém me visitou senão contarmos o acaso deste dia de Março de mil oitocentos e setenta e três de nosso senhor.

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