domingo, 16 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Uma cereja em Setembro

II

Lá estava eu sentada ao pé da salamandra, no velho banco de minha mãe, a trabalhar naquela maldita renda de bilros interminável. Preparava-me para a desmanchar uma vez mais. Lá fora, a chuva tinha aliviado a sua força de encontro à janela. Só o vento mantinha o seu furor de inverno e o algeroz acompanhava-o com o despejar da água do telhado para os cântaros. De vez em quando ouvia um estalar da madeira a queimar-se ou os ramos da nossa cerejeira nas vidraças da cozinha, coisa que me assustava de quando em quando. Parecia que desta vez o chá não teria o efeito que eu tanto desejava. Por essa razão ergui-me do banco, deixando cair a renda do meu colo, e dirigi-me para a cozinha aquecer mais um pouco de água, a fim de beber mais uma malga de tisana de camomila. Dia horrível, este. Quem terá ofendido nosso senhor Jesus Cristo no seu reino de paz. Queiram os anjos proteger esta casa.
Enquanto esperava a fervura na caçarola de cobre, olhava para o mar pelas vidraças sujas de lama e embaciadas pelo calor da cozinha. Ondas violentas vinham dar à costa, castanhas de areia revolta e trazendo destroços de embarcações. Não podia crer que alguém se tinha atrevido a enfrentar tal bravura, mas os pescadores precisam sempre de ganhar o seu pão e neste ano a miséria grassava por todo o lado, até nos tesouros reais e da igreja. Foi nesse momento, quando demandava por esses caminhos da imaginação, que me pareceu ver um vulto, uma sombra negra na duna mais próxima de minha casa. Assustei-me deveras, ficando-me um grito preso na garganta, e larguei a cortina que ficou a dar horas balançando. Só pode ter sido uma sombra, um ser da minha imaginação influenciada por esta tormenta, fiquei a cismar com a mão paralisada sentindo a cortina na ponta dos meus dedos. Ninguém está lá fora. Apenas o mar, as dunas, os cardos, a cerejeira, a horta, algumas madeiras que terei de ir buscar e pôr a secar, uma peça de roupa da minha defunta mãe que ter-me-ei olvidado de apanhar. Nada mais. Ninguém passa por aqui. Nada. Ninguém. Mas não me atrevia a abrir os olhos e voltar a olhar pela janela. Até que, recuperando a respiração do susto, os meus dedos prenderam a cortina e afastaram-na da minha vista. Encostei a minha testa esborrachando o nariz e nada. Ninguém lá estava. Até que uma mão bate na janela, JESUS NOSSO SENHOR, o que me fez de imediato largar a cortina uma vez mais, cambaleando para trás obrigando-me a entornar a caçarola que já fervia apagando o fogo. Corri de volta para a janela e de novo ninguém. Arredei pé da cozinha em direcção à porta de entrada e encostei o ouvido. Só se ouvia o vento e o algeroz. Abri de rompante a pesada porta e caiu-me nos braços, estatelando-se logo de seguida no chão, aquele corpo de homem desconhecido todo vestido de negro, naquela tarde de Março de mil oitocentos e setenta e três.
Rapidamente o virei de costas. Encontrava-se bastante pálido, moribundo, quase morto, todo encharcado. Naquele instante só pensei que me estava a estragar o tapete de entrada, que minha mãe tinha herdado de sua mãe. Tinha de o tirar dali o quanto antes, mas nunca pensei que tal magreza pudesse pesar tanto. Quando o tentava puxar pelas suas vestes, a cabeça esquelética do desconhecido voltou-se vomitando uma aguadilha imunda sobre a sua casaca e sobre o tapete da minha avó. Agora é que está estragado de vez, murmurei rancorosamente. E enquanto amaldiçoava o sujeito por aqueles estragos uns belos olhos azuis fitaram-me, atravessando-me inesperadamente dando-me um baque no meu imaculado coração. Tombei de traseira com o sobressalto daqueles olhos e do meu coração. De gatas aproximei-me daquele fantasma, mas já tinha de novo desmaiado. Respirei fundo, agarrei o tapete e comecei a puxá-lo mais para dentro de casa. Fechei a porta trancando-a e enquanto segurava o trinco com as minhas mãos tremendo, voltei-me para ele. O que fazer agora? Que fazer? Que fazer? Fazer o quê? E agora?
Corri todas as janelas para ver se mais alguém se encontrava na praia. Fechei todos os tapumes, para que a casa se mantivesse quente e acolhedora. Preparei uma enxerga junto da salamandra com o colchão de palha da minha mãe. Reatei o fogo que estava quase apagado e fui buscá-lo à entrada. Dormia ainda, imóvel, sem aparentar qualquer tipo de reacção. Uma alma penada enviada por nosso senhor para testar a minha fé e a minha conduta cristã, pensei, enquanto com todas as minhas forças puxava o tapete com aquele peso morto até junto do colchão. Virei-o e revirei-o para que ficasse de barriga para cima. Não me atrevi a despi-lo, mas também não digo que o mesmo não me passou pela cabeça. Corri escada acima, entrei no meu quarto, nem precisei de acender uma vela porque conheço de cor onde o armário se encontra, e retirei do seu interior um cobertor de pêlo de carneiro, voltando de imediato para a sua beira. Continuava sem se mexer. Depositei por cima do seu corpo encharcado o cobertor e uma vez mais aqueles olhos se descobriram. Desta vez não me assustei tanto como da primeira, nem me quedei no chão. Que belos olhos, dizia para mim.
“…”
“Está acordado?”
“…”
“Sabe onde está?”. Nada disse. Deverá ter sido um espasmo que o fez descerrar os olhos. Voltou a adormecer.
Como a salamandra ateava com bom fogo e calor, encaminhei-me para a cozinha pronta a acender o lume de chão e a preparar uma sopa para os dois. Chutei a renda para o lado.
Enquanto a água fervia, apercebi-me do que realmente tinha feito. Aquela renda tinha-me dado, e dava, tanto trabalho e eu, com um desdém que desconhecia na minha pessoa, arremessei-a para o lado. Porque me obstruía o caminho. A mesma coisa que me prendia a esta casa, a esta modorra de beira-mar, que me ajudou a passar os Invernos frios e insuportáveis, era a mesma que me impediu de chegar ao lume e acendê-lo. Não podia maltratar a minha renda de anos. Peguei nela e calmamente deixei-a por cima do corpo do desconhecido. Ficava uma imagem muito estranha, lembro-me de ter pensado, aquele corpo negro esquelético envolvido por um cobertor de lã de carneiro e uma renda de bilros a cobri-lo todo, até a cara. Tive a impressão de que nenhum mal lhe aconteceria, aqui ele estava protegido, comigo. Só nós dois.

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