sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - monólogo

2.

Mas colei-a de volta, não podia
ser de outra maneira, não havia
outra hipótese. O quê, deixava-la
ali caída no chão, partida, acrescentada
ao lixo que se foi acumulando, junto
com todas estas tralhas, as que eram
nossas e agora são ou tuas ou minhas?
Fiquei ainda algum tempo
a vê-la quebrada, havendo-a quebrado
de propósito porque a casa
estava demasiado calada, como tu
costumavas sempre estar quando em casa,
esta coisa que terei de largar mais tarde
ou mais cedo e não quero sair.
Telefonaram-te tantas vezes à tua procura,
enviaram-te mensagens combinando encontros,
saídas à noite para copos. Para os teus ouvidos,
o que tinhas de melhor, já que eras sempre
tão calado e só ouvias. Deixei-o morrer
por si, usaram-no até ficar sem bateria,
usaram-te até ficares cheio
das conversas, palavras soltas,
frases, parágrafos inteiros. Nada
disso era a tua memória e no entanto
lembravas-te de quase tudo, quase
como se fizesses uma colecção
pequenos pedaços daqui e dali:
um dedo com o sabugo à mostra,
um cabelo espigado caído no ombro,
uma minúscula aranha preta fazendo a sua teia no cabelo de alguém sentado à tua frente,
um coração de latão de uma pulseira perdido à boca do metro junto a um caixote do lixo,
um sorriso de um bêbedo antes de adormecer babando-se para o seu casaco coçado,
o beijo de alguns namorados,
uma jogada de xadrez,
o espirro de uma velha biata...
e ias apontando tudo no teu caderno, tudo
minuciosamente, mas no fim
apenas sabias falar de livros, tu
tão literário e tão pouco interessante.
Não havias de ficar calado, ninguém
afinal te ouvia a não ser eu e só
quando a isso me prestava. Estavas morto
para me falares quando chegava a casa e tenho
de te dizer que isso por vezes me enfastiava,
que às vezes só me apetecia ficar calada,
estendida no sofá a ver televisão, comendo
o jantar que preparavas com tanto afinco.
Qualquer coisa servia
para começares a soltar a lingua,
o último livro que leste, as ideias
que te tinham ocorrido ao longo do dia,
as brincadeiras dos gatos,
a violência infantil à porta
da nossa casa quando todas aquelas
crianças vinham da escola aos berros,
nas suas motas, comendo os seus doces
e batatas fritas, com os seus beiços
lambuzados de chocolate e sal. À sua passagem
os cães ladravam, os nossos gatos fugiam
assanhados, lançando tudo ao chão, trepavam
a árvore plantada no pátio. A árvore que gostávamos
que fosse de fruto e apenas fazia um chiqueiro
no Inverno, largando todas as suas folhas secas
e entupindo o ralo que tu, de impermeável, limpavas.
A árvore onde tantas vezes te vi à sombra,
quando te sentavas para escrever no teu caderno preto
à mesa velha, cigarro na boca e chávena de café
muitas vezes à minha espera.

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