domingo, 26 de setembro de 2010

uma pergunta

Depois de ter terminado a leitura de "The corporeal turn - an interdisciplinary reader" (Imprint-Academic, Exeter, 2009), conjunto de artigos e conferências de Maxine Sheets-Johnstone (antiga coreógrafa que se virou para a teoria sobre o corpo, o movimento e a importância destes dois, ou seja, elevá-los a conceitos maiores e inalianáveis, fundadores e depositários de todo o conhecimento, de onde tudo começa, linguagem, consciência, criação artística, etc.), e principalmente por causa do último texto, "On the challenge of languaging experience", que procura fundamentar a origem da linguagem (ontogenetica e filogeneticamente) no movimento e problematizar a impossibilidade de se dizer tudo - a linguagem é pós-cinética, a sua origem, no que respeita ao sentido e ao fazer sentido ascende à relação de cada ser (das amibas, bactérias, até aos seres humanos) consigo, com os outros e com o mundo pelo modo como se move, como experiencia e experimenta o mundo, os outros, etc.; e a linguagem falada e lida decorre de uma adequação, por assim dizer, dos ganhos adquiridos através do movimento (as sensações, as emoções) e de sentidos (sentidos das coisas, dinâmicas, afectos e perceptos, etc.) fundados no corpo com a distância ao mundo (sem esquecer, obviamente, o "progressivo desenvolvimento da linguagem como um fenómeno tanto evolucionário como ontogenético" (Sheets-Johnstone: 365).

Ora, a certo momento do seu artigo, quando inicia um processo de argumentação sobre a dificuldade de pôr em linguagem tudo aquilo que o corpo experiencia - da experiência para a linguagem, ponto fundamental do artigo -, Sheets-Johnstone debruça-se no "interior" e todo esse mundo por descobrir, inquirindo e dando como exemplo a experiência ontogenética (como a criança desenvolve a linguagem: "(...) as crianças [bebés] pensam através de termos corporais. Elas pensam por conceitos não-linguísticos, não com palavras mas por movimentos, conhecendo através das suas experiências que aberturas conduzem a interiores. Com efeito, experiências corporais testemunham para o facto que o conceito de interiores existe previamente à linguagem" (tradução minha, p. 368)), a arte pré-histórica nas cavernas, os conceitos de pneuma, respiração e espírito, bem como o conceito de sombra na psicanálise jungiana. Tudo o que é pela autora explorado procura, por um lado, fundamentar a dificuldade e o limite da linguagem do dia-a-dia a dizer a experiência de emoções e sensações (elementos igualmente constituintes da dinâmica do movimento: "Conceitos afectivos/tactilo-cinestésicos não são claramente criações léxicais mas o resultado de experiências afectivas/tactilo-cinestésicas; não estão claramente ligados a fenómenos estáticos mas a acontecimentos dinâmicos e experiências. Na verdade, quando os conceitos são vistos como criações estritamente léxicais - vindo pré-embalados com a língua/linguagem que uma pessoa fala e lê - o desafio de dizer experiências afectivo/tactilo-cinestésicas nunca é ultrapassado e a própria possibilidade de desafio negada" (tradução minha, p. 365); e por outro lado, validar o corpo e o movimento como dupla fonte da linguagem.

Se com a linguagem do dia-a-dia não acedemos nem nomeamos por completo os ganhos das experiências, das emoções, das sensações, a autora releva a dimensão poética ou o trabalho poético sobre a linguagem como aquela que, de modo perscrutador, verdadeiro explorador de abismos interiores, possibilita um certo aclarar, acesso, uma hipótese de nomeação, de dizer mais próximo. O exemplo que a autora nos oferece para apreciação, sendo de cultura anglófona, é, obviamente, Shakespeare, a sua poesia e, mais pertinentemente, os solilóquios de algumas personagens suas, tais como Hamlet, Macbeth, Ricardo III.

Concordando com muito do que Sheets-Johnstone apresenta e um post que recentemente li sobre poesia (portuguesa contemporânea e italiana, mas não só - porque a portuguesa não chegou ou não teve e ainda não tem o alcance que outras poesias e poetas tiveram e têm, salvo excepção de alguns (Camões, Pessoa, Herberto Helder, por exemplo)?) surgiu-me uma questão, que passo, depois de outra breve incursão, a colocar.

De acordo com Foucault, com o que este apresentou como dispositivos de subjectivação, ou seja, dispositivos de formação do "interior" bem como de controlo e domínio do corpo; e aliando a estes a dimensão da "confissão", ou pelo menos como certas religiões perverteram o poder investigador, narrativo e de liberdade da "confissão" (vd. Foucault, História da sexualidade, vol.I, Lisboa, 1994: 62 e ss.); não terá havido, no caso português com a igreja, a inquisição e o salazarismo, uma impossibilidade de extrema grandeza de acesso à dimensão poética, uma impossibilidade de conhecimento de si, do seu "interior", de procurar dizer a experiência?

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