sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Pascal Quignard




título: As tábuas de buxo de Apronenia Avitia
editora: Edições Cotovia


“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, escreveu uma vez Camões; e até que ponto assim é, até que ponto um, o tempo, influencia a outra, a vontade? E não haverá o contrário, não poderá suceder o oposto? Uma vontade tão magnânime, tão intensa, com tamanha força retórica ou expressa numa prática tão pungente que submete um enorme número de vontades a uma só, mesmo que plural mas não maioritária, que o tempo é forçado a acompanhar, a saltar com ela? E acompanhamos, deveras, o tempo? Se fôr verdade, se nos é possível escolher, termos o dom da escolha, o que escolher? O tempo ou a vontade? E em relação ao tempo o que escolher, o progresso ou a evolução? E a vontade, a nossa ou a que vem de fora, do social, do político, da pequena ou grande comunidade, da técnica?
Que certas vontades, ou seja, certas forças, na história escrita enquanto seres humanos, enquanto Humanidade, já provocaram saltos no tempo, transformações geométricas, como do círculo repetitivo à linha escatológica, disso temos provas. E o que isso nos diz do tempo senão, somente, a sua representação à escala humana, imagens geométricas ou matemáticas, do mundo animal (a cobra mordendo a sua própria cauda, a Fénix renascendo das suas cinzas, o homem, porque não, no enigma da esfinge, etc.), do mundo inorgânico (o grão de areia, a água no rio onde jamais nos banhamos duas vezes, etc.). Imaginamos que são, já por si, vontades, forças que procuram capturar o que poderá ser incapturável.
Ora, semelhantes questões se podem colocar quanto ao pensamento que brotou num certo tempo, imerso nas forças ou vontades desse próprio tempo. Temos acesso, através da leitura de obras conservadas, traduzidas, glosadas, criticadas ao longo do tempo, a esse pensamento, a essa força de um tempo e lançada no tempo; e através desse acesso dá-se, de cada vez, a cada leitura, o confronto de tempos, pensamentos, forças, vontades. Mas não será mais do que isso, acesso, abertura e confronto, nunca uma completa osmose, uma irmanação absoluta. Nunca, no tempo que é agora o nosso, no pensamento, ou no conhecimento, ou ainda na informação que hoje temos poderá alguma vez haver o tempo ou o pensamento, etc., de, por exemplo, alguém do século xix ou xviii. Haverá talvez pensamento dito primitivo (de um ponto de vista ocidental), mas não podemos dizer com toda a certeza que alguém, hoje, pense como um grego do séc. v A.C. Compreendemos o pensamento anterior ao nosso, mas pensamos o pensamento do nosso tempo e é com esse que temos acesso aos tempos precedentes.
Este pequeno exórdio, esta abertura ao pensamento e ao tempo (dúvidas minhas) serve de mote para vos apresentar um curto livro de Pascal Quignard (1948-), “As tábuas de buxo de Apronenia Avitia”. De origem francesa, Quignard cresceu no seio de uma família culta e musical, aprendendo desde cedo vários instrumentos. Tendo sido uma criança frágil, anoréctica mesmo, dedicou-se, para além da música, à literatura às línguas e à história. Cursou filosofia mas fugiu dela com os acontecimentos de Maio de 68. A sua fuga seguiu os caminhos da sua paixão infantil e, após a publicação de um ensaio sobre Sacher-Masoch, foi convidado a participar na revista “L’Éphémère” e imediatamente contratado pela editora Gallimard como leitor, onde desenvolveu um trabalho reconhecido pela casa chegando a ser secretário-geral para o desenvolvimento editorial. Ao longo dos anos foi escrevendo maioritariamente romances – um dos mais conhecidos foi “Todas as manhãs do mundo”, adaptado para o cinema pelo próprio Quignard e pelo realizador Alain Corneau – ao lado de ensaios. Após um problema de coração afasta-se determinantemente da edição e da música – era um dos principais organizadores de um festival em França de música e teatro barroco – centra-se somente na escrita e principia um novo caminho, mesclando romance, poesia, diário, fragmento, aforismo, ensaio, conto, sonho: uma escrita total. “As tábuas de buxo…”, contudo, não é dessa fase, embora seja de uma escrita impressionante, clara, cuidada e trabalhada.
Pascal Quignard lança-nos um desafio. Chamo desafio porque não encontro outra palavra. A verdade é que tenho andado, desde que terminei o livro, à procura desta nobre romana do século iv D.C. Apronenia Avitia e não a encontro senão no livro. Terá realmente existido? Terá sido silenciada? Ou é somente uma criação de Quignard?
O livro estrutura-se em duas partes. A primeira, uma biografia de Avitia, escrita quase ao modo antigo das figuras importantes de uma cidade, talvez como uma entrada numa enciclopédia, cruzando múltiplas leituras, desde os contextos históricos, políticos, sociais de modo a fundamentar a vida de Avitia, ou, por outras palavras, a dar forma à “personagem”. A fundamentação é levada a tal ponto que o desafio se inicia desde logo, nas primeiras páginas: o que iremos ler não é ficção mas a colectânea de um diário, o que chegou a nós dessa mulher. Esta primeira parte é como a entrada de um edifício, o pórtico frisado de uma igreja, uma “villa” de onde temos a vista de toda a paisagem envolvente e um ou outro aspecto do seu interior. De seguida, a segunda parte, a maior porção do corpo do livro, o diário de Apronenia Avitia, o mergulho no interior desta mulher, no pensamento desta mulher. Aí descobrimos o comum e o incomum lado a lado. Temos o dia-a-dia como listas de compras, anotações, ditos engraçados, cenas banais, como somos surpreendidos com um olhar feminino do mundo do seu tempo, pequenos acontecimentos elevados à dimensão poética, o pensamento sobre o amor e a sombra sempre constante da morte a cada passo, o medo da falência do corpo e a luta de duas vontades, a pagã e a cristã.
Se tudo é uma ficção – o diário, a vida fundamentada – e não é verdade, é sem dúvida autêntico (sendo mais, talvez, do que a verdade).

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