sexta-feira, 16 de julho de 2010

Memória

Muitas vezes me pergunto se somos pessoas tristes por natureza. Quero dizer, raras são as memórias que visitamos pela felicidade que elas foram formadas. Lembro-me que há não muito tempo telejornais e jornais mostravam no fim, como que para nos descansar, imagens e notícias que nos diziam que ainda restava um pouco de beleza, de pedaços daquilo que podemos chamar felicidade. Passámos do olhar sobre a felicidade para o da chacota, do sorriso inesperado da beleza para o riso gozado de um ridículo, esperando sempre que nunca sejamos nós as personagens da cena catártica da comédia. Esta mudança fará parte das nossas memórias tristes, inevitavelmente.
É que a nostalgia fará sempre parte do lado do desgosto, da perda. O facto de sentirmos que perdemos alguma coisa força-nos a lembrar uma qualquer memória que catalogamos como feliz para, por momentos, voltarmos a ter esse sorriso quase beatífico: oh, lembras-te, que bonito que foi. Ah foi não foi? Pois é, mas a vida continua.
Lembro-me como se fosse ontem. Não poderá haver pior redundância. Nunca poderei lembrar-me do que ainda não passou. Reduzimos sempre tudo, no que respeita à memória, a dois tempos: o que está a passar e o que passou; e trazemos o que passou para o lado do que está a passar, para que passe de novo. Se lembramos é para nos sentirmos diferentes ou porque alguma coisa nos pôs a sentir de modo semelhante, e nunca idêntico, a uma outra coisa por que passámos.
Eu tenho uma memória que, embora triste, me faz ter esse sorriso de que falei há pouco. Não de um dia, mas de uma semana. Eu era uma criança de sete ou oito anos. Andava na escola como muitos têm essa oportunidade. Cheguei a casa, lanchei, fiz os trabalhos de casa, vi os desenhos animados, jantei e por qualquer razão a minha mãe chama-me à cozinha. Não sabia por que é que àquela hora, devendo já estar na cama por aquela altura, a minha mãe me chamou à cozinha. Fui ter com aqueles gigantes que eram os meus pais, que me aguardavam tão sérios como a Ordem personificada. Sentei-me. Por qualquer razão que desconhecia iria ser julgado sem saber o motivo, o crime, e só mais tarde soube que poder-me-ia ter chamado K. se não tivessem dito o meu nome. Perguntaram-me onde se encontrava a minha carteira, a melhor, a preferida, a do aniversário, vermelha de velcro e com o snoopy em roupa de tenista estampada, a minha, a tua carteira. Disse-lhes a verdade, naquele dia não a tinha levado para a escola porque não me lembrava de a ter visto e trazido. Não acreditaram. Perguntaram-me de novo e devolvi a resposta anterior e este interrogatório durou uma hora. Mandaram-me para a cama com o aviso que amanhã iríamos de novo falar. Tive pesadelos. No outro dia repetiu-se o mesmo inquérito, só que desta vez, já que a verdade não tinha servido, comecei a inventar uma história de uns rapazes mais velhos que me roubavam no colégio. Menti, portanto. Podes imaginar o meu estado, uma vez que agora não o consigo reproduzir. Acrescentou-se-me o peso da mentira na consciência para além da perda e da autoavaliação induzida pelos meus pais e as noites foram ficando cada vez mais pesadas, mais viscosas, mais estranhas. O processo, porque era um processo jurídico que se tratava com um juiz e um advogado a revezarem-se frente a um réu, prolongou-se durante uma semana, com a minha mentira, o meu desconhecimento, a minha perda, a minha angústia, o desgosto deles, a tristeza de ambos a aumentar de dia para dia. Na sexta-feira apelaram a minha presença uma vez mais. Vesti o meu melhor pijama, as minhas melhores pantufas (as únicas) e prostrei-me à sua frente sentindo a corda no pescoço cada vez menos laça. Sentei-me, estava pronto. Refizeram a sua pergunta relevando acima de tudo o valor da verdade, coisa que eu tinha em alta estima malgrado a mentira deposta sobre a mesa do tribunal culinário. A minha história foi limada ao longo das demoradas cinco noites. Ouviram-me uma vez mais e depois de um, pareceu-me, longo silêncio, depuseram a carteira sobre a mesa. E agora, perguntaram-me. Essa questão vinda do lado deles confundiu-se com a minha própria voz dentro da minha cabeça. A carteira sempre esteve em casa, eu de facto não a tinha levado na segunda-feira, como tinha primeiramente dito, e a empregada tinha-a guardado no móvel da entrada e minha mãe encontrou-a naquela sexta-feira. Por que é que mentiste? Menti porque disse a verdade. Castigaram-me e nunca mais falámos desse caso. Dessa semana retirei duas lições. A primeira é que os meus pais me ensinaram a mentir, a segunda é a grande lição da repetição, isto é, a inauguração da diferença. Por causa dessas duas lições posso contar as minhas memórias.
Não é uma memória feliz, é uma triste lembrança, mas é um bom exemplo do que podia ser a melhor lembrança. Porquê melhor? Façamos o que fizermos a memória, sempre que a trazemos, é uma construção de vários pedaços de afectos e perceptos, é uma narrativa, uma ficção, uma repetição diferente e diferida nunca idêntica àquela por que vivemos. Se eu e tu passarmos por um acontecimento que marque, e a memória é sempre depósito de marcas, estou certo que não o contamos da mesma maneira, há sempre qualquer coisa que se acrescenta do lado da mentira, da ficção, do mundo de cada um. Haverá lugar para a melhor memória, depois disto tudo? Parecerá que não. É que a melhor memória será necessariamente aquela que não podemos lembrar, aquela que quando contada estará plena de verdade e nunca por alguém contestada, a memória da nossa morte narrada por nós, não do seu instante, mas aquela impossível que contaremos se ouvirem a nossa voz. Não a podemos repetir, não se somará qualquer diferença, não podemos mentir sobre a nossa morte verdadeira e não a podemos contar. Por essa razão a melhor memória será sempre a nossa vida, quando não a contamos a ninguém.

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