domingo, 18 de julho de 2010

lei

(NOTA - este foi o último texto escrito para o projecto da ordenação do mundo: a melhor lei)



Um dia em que estava de férias, neste ano que passou, eu, a minha companheira, um dos meus irmão e a sua esposa, discutíamos, não sei por que razão, qual o fundamento das leis, ou melhor, que lógica subjaz a criação das leis, como é que se produz e se afirma todo o poder judicial. A dado momento pareceu-nos que esse longo braço, como se diz nos westerns relativamente à lei, à justiça e o ser que as incorpora, tinha qualquer coisa de absurdo. Exactamente como quando o bandido se julga a salvo no deserto ou em grutas nas montanhas, possivelmente há dias, meses, anos e uma mão invisível o apanha e nada foge a essa mão. No fim é isso mesmo, alcança-nos por vezes mesmo depois de mortos. Enfim, a lei existe e é simultaneamente como que invisível, paira algures ao nosso redor apanhando-nos desprevenidos, uma mão que nos agarra o ombro e nos volta sobre nós para encararmos qualquer coisa que está lá e não é vista.
De facto, sabemos da existência de pesados tomos empoeirados desde a antiguidade, o código de hamurabi, o código romano, e creio que não é por acaso que se chamam códigos. Esses livros escrevem-se numa linguagem tão sua que têm de ser decifrados minuciosamente. Todos sabem o que é uma lei e para que serve, mas dizê-la de cor, nem mesmo os seus detentores andando sempre com os densos calhamaços de um lado para o outro, sempre e sempre a folheá-los. Uma lei, pensa-se, não pode, ou não deveria, ter falhas, não deveria estar aberta à livre interpretação como um texto literário. A sua interpretação, tal como esse braço estendido e que aponta, no seu melhor limite (será isto um oximoro), deveria ser unidireccional, uma rua de sentido único, mas sabemo-lo que não é bem assim. Muitas vezes já temos visto que uma mesma lei tanto pode servir para uma determinada coisa, a coisa para a qual foi escrita, como, logo depois, ser usada para dizer o contrário, e é a mesma lei. O que nos diz isto, então, da sua natureza? Que é feita de barro? Plasticina? Silicone? Ou, também como se costuma dizer, são feitas para serem quebradas?
A lei, parece-me, tem um certo aspecto de suplemento. Uma lei está ao abrigo de outra lei, precisa de uma anterior e uma que se lhe segue para ser lei. Nenhuma lei cobre inteiramente o que protege, o que salvaguarda, o que proíbe. O que uma lei pede não é o seu cumprimento, o seu pôr em prática, mas sempre o nascimento de uma outra e outra lei, num gesto até ao infinito de se procurar tapar as falhas que ela própria cria. Criou-se uma necessidade de existência de leis para regulamentar e validar essa mesma necessidade.
Nunca se confiou muito nas leis, daí o serem constantemente retocadas, rescritas, renovadas. Na verdade, se a primeira lei veio de Deus, o que isso mostra é que Ele já não tinha muita confiança em nós e desde o Princípio: daqui não passas e ali não tocas.
Pensada e criada para todos, para uma maioria, deixa sempre de fora qualquer coisa. É que, se virmos bem, o homem é incapaz por natureza de criar alguma coisa de valor universal, quero dizer, que sirva a todos ao mesmo tempo e no mesmo espaço, haverá sempre alguém a quem essa coisa não lhe toca de todo ou está completamente contra por uma situação (tempo+espaço) que escapa à lei. O que isto nos diz é que não há nenhuma lei boa, porque vinda de um só, ou de um grupo de homens, uma lei não se mostra senão como subjectividade pela própria impossibilidade de objectividade e/ou universalidade do homem. E quem diz o homem diz o Universo, há sempre qualquer coisa que escapa, que sai descontrolada, meteoros, gases, energia que se mistura com outra que explode que faz nascer buracos negros, estrelas, planetas, seres, eu sei lá. O próprio Universo não é lá muito objectivo, nem tudo o que faz ou que acontece nele é para todos, mas as suas leis são demasiado misteriosas, ou talvez não.
Eu não acredito que não haja alguém que não tenha, nem que seja por uma única vez na vida, o discernimento de diferenciar o “bem” do “mal” e vice-versa, mas, tal como Deus, também nós não nos acreditamos. Não sei até se a questão do bem e do mal não se prende mais a uma prática do que a uma oposição ontológica entre os dois. O certo é que a invisível e escrita lei aí está para prescrever uma prática. Mais lembrete do que ordem, mas infelizmente mais mal do que bem, eu não consigo parar de me sentir de alguma forma agrilhoado.
Ora, se nenhuma lei é boa, qual é a melhor entre as más? É, definitivamente, essa lei misteriosa do Universo connosco lá dentro, a lei do acaso, se se poderá afirmar que exista uma lei do acaso.
Por acaso o acaso nos prende de alguma forma? Não, já que sendo acaso por acaso acontece, quando se deu nem o sabíamos por se dar, deu-se e não o soubemos, dando-se quem sabe se ele se deu, se alguma vez se dará, nunca se dando só por acaso, mas sempre alguma coisa se dará, disso estamos seguros. Não se prescreve o acaso e muito dificilmente se o pratica. Claro que existem os ditos jogos de azar, mas tudo são questões de probabilidades e possibilidades matemáticas e de leitura do mundo. A lei do acaso esquiva-se à matemática, ao plano minuciosamente concebido, à interpretação.
Por exemplo, o amor rege-se pelas leis do acaso. Poderemos alguma vez proibir uma e outra pessoa de se apaixonarem, de se amarem, de se verem? Pode-se separar os corpos, mas o próprio amor tem um longo braço invisível como a lei. O amor não se planeia, acontece por acaso, o que se segue é já outra história, isto é, fazer com que ele cresça e continue embora nunca fugindo à lei do acaso. Mesmo perdê-lo ou deixar de se sentir apaixonado depende mais de acasos do que de uma vontade, um plano, uma probabilidade. Será correcto respeitarmos as leis de uma sociedade, se vivemos numa há que nos acondicionarmos às suas leis, se assim quisermos – pela minha parte penso que bastaria uma boa dose de respeito e responsabilidade perante cada coisa para que pudéssemos viver em liberdade e harmonia, só que por acaso estas duas qualidades rareiam no homem desde que nasceu – mas ao acaso dever-se-ia prestar honras desde que acordamos, porque ele ou ela assim merece.

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