domingo, 1 de agosto de 2010

Javier Marías




Título: Negras Costas do Tempo
Editora: Relógio d'Água



Há um livro póstumo de Llansol cujo título afirma peremptoriamente, ou subtrai ao fundo do texto de qualquer autor, uma das suas forças inegáveis; qualquer coisa como, o princípio de um livro é precioso – não serão estas, decerto, as palavras, cito-o ou digo-o de memória. Anos antes, creio que nesse único e poético romance (não tão deslumbrante quanto a sua poesia), o “Lunário”, ou talvez tenha sido nessa colectânea de prosas, “O Anjo Mudo”, sentenciava Al Berto algo muito semelhante. O princípio de um texto tem de nos prender, surpreender, um golpe imediato e inesperado à nossa respiração sujeitando-a à do romance; depois, basta deixarmo-nos levar onde o texto nos quiser conduzir, tal como uma paixão.
Pessoalmente, poucos foram os livros que não me surpreenderam. Sou teimoso, obtuso, condescendente. Se não fôr logo o princípio, ou seja, as primeiras palavras, frase, parágrafo, mais à frente, a meio ou mesmo quase no fim pode o romance começar. O importante é o diálogo que se estabelece ou procurá-lo. As minhas mais fortes, presentes e importantes amizades não começaram nunca como esse princípio deduzido por Al Berto ou Llansol, levaram o seu tempo, encontraram-se nalgum ponto do caminho. Ora, essa é uma das particularidades dos próprios princípios – discuti isso com o Rui Cancela noutro lado –; o princípio, maioritariamente, só se dá a meio caminho, a media res como as epopeias, a mezzo camin da nossa vida, já dizia Dante. É nesse espaço límbico, labiríntico, na qual já se deu qualquer coisa lá muito atrás e tanto há para se dar adiante que podemos, com certa segurança, com modesta confiança, sugerir, “eis que alguma coisa começou” mais do que começa. Sobre isso já muito se escreveu alcançando-se o cúmulo de afiançar, diz uma das vozes ainda viva e de grande sageza, Georges Steiner, princípios já não os há, pois o Verbo já aí está.
Todavia, tenho de começar por algum lado esta apresentação, que já começou, já corre por aqui, do fantástico romance de Javier Marías, “Negras costas do tempo”; e não haverá outra forma senão citá-lo, citar o seu princípio, a abertura: “Creio não ter confundido ainda nunca a ficção com a realidade, embora as tenha misturado mais de uma vez como toda a gente, não somente os romancistas, não somente os escritores, mas quantos contaram alguma coisa desde que principiou o nosso conhecido tempo, e nesse tempo conhecido ninguém fez outra coisa senão contar e contar, ou preparar e meditar o seu conto, ou maquiná-lo” (2002: 9). De rompante surge a questão: o que será, pois, este livro? Romance, biografia, ensaio, diário? Tudo isso, na verdade, e o mote é, precisamente, o que subjaz nesse parágrafo inaugural.
Javier Marías (1951-), no tempo em que escreveu este texto como agora, é já considerado uma das vozes mais importantes vozes da literatura espanhola da actualidade, bastamente premiado – talvez ele ou Vila-Matas, outro dos meus favoritos, venha a ser nobilizado – e com uma extensa obra publicada e traduzida em Portugal e no estrangeiro, repleta de romances, contos, traduções e ensaios literários e biográficos, bem como exerceu a carreira de docente universitário na Oxford dos Estados Unidos da América e na Complutense de Madrid. No fim dos anos oitenta publicou um romance, uma ficção, “Todas as Almas”, na qual o narrador é um professor em Oxford, trabalhando no mesmo departamento que Marías trabalhou. Obviamente, os seus leitores procuraram identificar e homogeneizar as duas vidas, narrador e autor, e aquilo que era somente ficção imaginada rapidamente se tornou num “romance à clef”, como diz a gíria literária, ou seja o relato ficcionado ipsis verbis de uma experiência, sendo cada personagem uma pessoa real mascarada com outro nome, cada situação a tradução mais verosímil de um acontecimento vivido. Mas, conquanto assim seja, conquanto hajam tantas interpretações quantos leitores, não terá o autor uma última palavra ou uma primeira? Ora, “Negras costas do tempo” foi escrito com esse propósito, parodiando todas as situações sequentes e consequentes dessas interpretações; e se Marías ainda nunca confundiu ficção e realidade este livro fará com que a fronteira que as separa se fragilize de modo a que nenhum leitor fique indiferente, nem mesmo o seu autor que, a páginas tantas, se questiona a si próprio quanto a essa fronteira.
Não se pense que necessitamos de conhecer profundamente a obra que provocou “Negras costas do tempo”. Este romance é sedutor suficiente – pelo menos para mim foi para tudo o que virá do autor – e vale por si; e quem questiona a sua validade, que o tome como um dos mais belos prefácios alguma vez escritos na história da literatura (pelo menos o mais longo que conheço).
Acima de tudo este é um romance sobre o tempo, sobre essa parte sombria em que a imaginação preenche os espaços livres da vida, porque, na verdade, mal começamos a contar qualquer lembrança a imaginação, essa aranha do coração, tece a teia que liga os grãos da areia da memória.

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