domingo, 27 de dezembro de 2009

o homem que corrompeu hadleyburg





Título: O Homem que corrompeu Hadleyburg
Autor: Mark Twain
Editora: Assírio & Alvim


Decerto que se lembrarão – eu pelo menos sim, de quando em vez – nesses dias de verão quente, em que passeiam perto de um rio, ou se encaminham por entre silvestre vegetação cheia de poeira, sob um sol abrasador em direcção a uma praia, calças de ganga com várias dobras deixando os tornozelos ao ar, descalços ou de sandálias, camisa enfunada pela brisa, de uma personagem da nossa infância, uma muito em particular. As pessoas da minha geração, homens e mulheres, e alguns dos nossos pais, também, decerto que se lembram, mas nem todas, é certo, já que não existem, infelizmente, lembranças universais. Mas de dentro dessa lembrança uma música que arredonda os lábios em assobio ou que solta a voz, sabendo ou não cantar – não é isso que interessa – chamando por essa personagem – se andarmos de bicicleta logo outra música aparece. Falo, saberão já, de Tom Sawyer.
Ora, eu cresci com os filmes e os desenhos animados do Tom Sawyer – tenho mesmo umas calças de ganga baptizadas como as minhas calças de Tom Sawyer, das quais não me despeço – e sempre me prometi um dia para ler o romance e a sequela “As aventuras de Huckleberry Finn”, mas ao invés li outras histórias de Mark Twain.
Para quem não sabe – e eu não o sabia antes de um filme onde se falou disso mesmo – Mark Twain é o pseudónimo de Samuel Langhorne Clemens e a escolha desse nome está intimamente ligada à sua biografia. Durante muitos anos Mark Twain pilotou barcos a vapor ao longo do Mississípi e a condução nesse traiçoeiro rio tem de ser cautelosa e calculada com um fio de corda de nós distribuídos de metro a metro. A cada nó gritava-se “mark”. Mas também se diz que, quando o autor se encontrava no oeste e num bar pedia um whisky duplo, dizia sempre “mark twain”. Nunca se saberá com probidade. Mas uma coisa é certa, o seu nome permanece nas nossas memórias ao longo dos anos e em tantas histórias que até nos maravilha a descoberta de serem dele tantas que encontramos, como “O príncipe e o pobre” e “Um yankee na corte do rei Artur” – já tantas vezes adaptados para o cinema e desenhos animados.
Tendo viajado pela América e Europa, tendo trabalhado em vários ofícios e escrito para muitos jornais, Mark Twain conquistou, para além de um conhecimento profundo do ser humano, uma escrita simples, directa, maleável e continuamente adequada no tom para nos dar a ver o bem e o mal de cada homem, o mais belo e o mais sombrio, apontando não só a flor resplandecente mas igualmente o monte de estrume de onde ela cresce e se nutre. É assim que nos chega esta brilhante história, “O Homem que corrompeu Hadleyburg”.
Conquanto escrita e editada na última década do século xix, esta história é plena de contemporaneidade. Retratando uma pequena cidade que se intitulava como o exemplo de rectidão, de humildade, de último bastião de honestidade e integridade, na qual as crianças eram educadas desde o berço – quantas não são ainda as pequenas terras, aqui e ali, que no seu enclausuramento fomentam a mesma atitude; ou até mesmo entre famílias ou, em grande escala, países que se auto-proclamam de exemplo a seguir no que respeita ao civismo, à ética, etc. – Mark Twain desmonta a arrogância e a auto-complacência através do gesto mais simples, isto é, o poder das palavras, das suas palavras. É certo que a pequena cidade cai, mas qualquer leitor que se pense maior do que é antes de ler este livro cai depois dessas palavras. No mês passado falei-vos de um benfeitor que procurou ajudar um bêbedo inveterado, no livro de Joseph Roth, “A lenda do Santo Bebedor”. Ora, ligando a esse enredo – talvez pudéssemos falar de mais uma história encaixada no ficheiro do tema da dívida – aqui a trama é urdida de forma simples. Um forasteiro que foi maltratado pela cidade planeia uma vingança que vai directa ao coração honrado de Hadleyburg. Inventando um benfeitor que o colocou no bom caminho afastando-o do pecado do jogo, pretende agora, passado alguns anos, recompensar o benfeitor na mesma moeda, dinheiro vivo, multiplicado por cem, por assim dizer. Escolhe ao acaso, diz assim uma carta que acompanha o saco tentador, um dos “nobres”, um dos “incorruptíveis” para encontrar o dito benfeitor para saldar a dívida…
Ora, é necessário ler esta história porque já disse de mais. Mas o importante aqui, penso eu, é termos em conta o seguinte: não sabemos o alcance das nossas palavras, nem dos nossos gestos, por mais que os julguemos livres de malvadez alguém pode sair magoado; devemos ser rectos, íntegros, honestos, mas não nos deixemos cegar: as nossas melhores qualidades, essas que nos granjeiam respeito de todos, podem muito bem tornar-se no nosso maior defeito se não soubermos acolher o outro… mas eu nunca fui bom para dar conselhos, convido apenas à leitura.

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