terça-feira, 18 de agosto de 2009

uma colher no rio





para mim


aqui jazo eu junto à campa
um homem cabisbaixo e de rosto cadavérico
quem me conheceu sorri
em vida eu fui o bêbado da vila
de nuvens na tempestade

no dealbar da vida eu conheci a esperança e pressenti a glória
pedaços dessa coisa medíocre
os vinhos, as mulheres, uma vida de prazeres
em muitas horas de vigília nocturna
e quem é que pode dizer
procurar os meus poemas para reuni-los em livro
todos os doentes, os feridos, os incautos
depois de assentar a cabeça e voltar à igreja
desejei ter ficado em casa e ter ido preso
pelo roubo dos porcos
a morte aos vinte e cinco

hoje o cheiro a fumo do Outono
à espera que ele saísse, mostrando primeiro
por entre a poeira levantada e os uivos de dor
quando temos essas nobres decisões
mas assim que surgiram os primeiros cabelos brancos
foi então que percebi que eu era um dos bobos da vida
por mais de vinte e quatro horas
e já não falo em adquirir mais
mas torturei esse amor, envenenei-o
é isto o que a vida tem de triste

o desgosto bateu-me à porta, mas eu tive medo
mas eu aprendi também alguma coisa acerca da vida
entre tantas outras cruzadas para purgar os pecados do povo
certa noite, morreu-me nos braços; por assim dizer
e agora, deixai-me que vos pergunte
grande é quem escreve um verso como este

e eu não sabia o que fazer. já não era capaz
se pudesse ter vivido mais um ano
quando pensam nessa coisa tão cómica a que chamam vida?
tivesse apenas descarrilado, talvez eu escapasse com vida
tragédia e comédia, verdade e valentia
podem servir-vos para algo na vida
quão difícil é, no final
a melhor fotografia que alguma vez tirei

se eu chorei ao pensar o que iria ser de mim
a eles devo tudo aquilo que fui
a puxar pela corda para sair do circulo
pela corda da pobreza
reservando os fios do amor e da amizade
por causa de uma veia rebentada no meu cérebro

mas imagina-te de cabelos brancos, curvado
de modo a conseguir chegar a casa
que eu haveria de voltar. e eu voltei.
mas uma promessa é uma promessa
e são substituídas por outras, ou então não o são
exemplos de uma tradição gloriosa
agora estou aqui para honrar
às voltas na taberna, como se a liberdade
sempre a pensar, a pensar, a pensar
com as contas, as rendas e as letras
acabou por não ter utilidade nenhuma
o que eu tinha em mente

a minha alma poderia ter sido tão serena
quando o meu pai se encontrava no leito de morte
e o que eu digo é o seguinte: se no homem existe alguma coisa
ignorando por completo a verdade
junto aos pés do velho
tu, que não foste capaz de lutar até ao fim
e por que razão nunca matei um homem
um livro
e correr campo fora
limitei-me a abanar a cabeça
que outra coisa senão o amor de deus poderia ter feito

foi isso o que secou a minha alma
e dias de tédio, e noites de terror
(coisas materiais, assim como a cultura e a sabedoria)
e porque brilham tanto esses teus olhos?
só tens uma maneira de sair deste terreiro:
um caminho, e que toda a minha errância
deixou-me sozinho, como sempre fizera.

2008
A partir de Spoon River de Edgar Lee Masters

2 comentários:

Anónimo disse...

que bom!
tantas colagens que ainda não conheço e outras já antigas para ouvir pelos teus lábios antes de adormecer numas noites próximas de maresia

fernando machado silva disse...

obrigado, car@ anónim@. estranho é assinar como anónimo e, no entanto, conhecer e querer ouvir as colagens pelos meus lábios antes de adormecer! este anónimo parece-me demasiado próximo