terça-feira, 18 de agosto de 2009

sião revisitado

como sei que, normalmente, os textos num blog são pequenos e os meus não; e como sei, também, que introduzi vários poemas em bloco, o que, de certeza, enfastiava quem se propunha a ler, decidi revisitar o blog e separar todos os poemas. assim, parece que tenho muitas entradas - o que é mentira - quando afinal só mudou a apresentação.

A ideia da colagem continua a ser a mesma. aqui está: estas colagens não são um grande avanço relativamente ao processo iniciado pelos dadaístas, mas afastam-se ligeiramente do seu processo: 1)o objecto de partida é sempre um livro de poemas que li ou que acabei por ler após a realização do poema; 2)de princípio o poema começa com o primeiro verso do livro (exceptuando um ou outro poema); 3)a lei é ainda a do acaso - abre-se o livro e, sem escolher previamente o verso que segue ao primeiro, onde calhar o olho de leitura, então, é esse que se aponta; 4)tal como o princípio, o fim (exceptuando igualmente um ou outro poema) é o verso que termina o livro; 5)há, claro, um momento em que o acaso parece desaparecer. tal como o acaso, também esse momento não se controla de todo. esse momento faz com que haja mais de nós do que o livre curso caótico de palavras e promove o surgimento de uma frágil e ténue linha de discurso, uma voz ainda demasiado abafada mas, a nossa. assim, estes poemas são, de certo modo, plurais, meus e dos autores que me permitiram colar.


um espírito habita
uma ânsia cruel de liberdade
e eu compreendo a vossa língua estranha

coro antigo das vozes
das vozes primitivas

um pranto de larvas

ao deter teus olhos cor das ondas
mulher bizarramente estranha
lembra o silvo das jibóias

não me imagines um doido
eu vivo como um monge
em glacial impassibilidade
que exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso
como o universo que se concentrou para gerar a vida todo o universo se concentra para
[destruir a primavera num fenómeno eléctrico

uma gota de tinta como uma gota de leite

primeira noite de luar e de loucura

todos os dias arranco de mim próprio um grito
arredo tudo para ficar só contigo no mundo
e agora a morte não existe
deus não existe
a vida eterna não existe
(que profundo Spleen o destas noites)
que triste ver os mortos a nadar
(todo o planeta é zero
por toda a parte é mau o homem)
o cheiro a carne que nos embebeda
pútrido o ventre
arrastando-se na areia com a salsugem

conchas
pedrinhas
pedacinhos de ossos

eu não estou doido
sou assim confuso
eu respondo

o homem é a lembrança de Alguém
eu vejo-me como um sonho agitado no interior duma caveira monstruosa
e ouço a voz dos meus sonhos
o Universo é um cérebro infinito povoado de inúmeras imagens
morre saindo fora de água
um Oriente ao oriente do Oriente
em paradoxo e incompetência astral

num jardim onde há flores no ar sem hastes
tenho a impressão de ter em casa a faca
com que foi degolado o percursor

fumo
canso
no meu cérebro farto de cansar-se
contra nós e contra o mundo

com segredos adultérios

a eterna mágoa de um beijo
guarda
fica no ar

escolhe

a vida ou a existência

amemos o que veremos duas vezes
ao longo do cais

procura no meu olho
uma centelha de vício
de um negro azul concentrado
que oprime o pensamento

tiro pedaços de sangue à noite
sinto e sento-me vestido de vozes

sossegadas comigo no pensamento

na solidão do mundo a solidão buscada

para que não te percas nas cidades mortas
eu aponto o teu nariz para o deserto limpo com seu perfume de astros
para contar os grãos destas dunas
num firmamento de lixo

para regressar da morte

o meu perfil é a única esperança de existir um deus que não limita
o morto a rir-se
o riso é o seu reino inesgotável
TODOS SEM EXCEPÇÃO TÊM A MÁXIMA CULPA

num homem sem nada para a morte
à procura de uma mãe que não seja virgem

sou os milhões de astros microorganismos estrelas

a angústia síntese de todos os suicidas

não é o AMOR uma emoção nem um sentimento nem uma ideia
O AMOR É UM SENTIDO
Brilhante-Estrela-Sem-Destino-coberta de musgo

em tempos de sedução
o que se diz da beleza é uma armadilha

não compreendo nada

por isso cada vez mais me devoto às imobilidades
aos silêncios
ao sono

não sou vítima de nada
não sou vítima da ilusão do conhecimento

por isso ainda estou vivo
com o vómito nos pulsos por cada noite roubada

se não temos saúde bastante sejamos pelo menos doentes exemplares

pelo meu relógio são horas de matar
a boca no coração do sangue
escolher a tempo a nossa morte e amá-la
menos pelo lado do mar
e do umbigo para baixo do quiosque chinês

os dias já não são o que eram
a dor de os deixar e a alegria de partir ficaram em equilíbrio
num olhar denso

mas eu já habitava plenamente a minha morte

(e o receio da morte é a fonte da arte)
eu amo a embriaguês vasta dos espaços
eu um fugitivo da catástrofe
o meu entretenimento é sentar-me a esperar
os visitantes dos meus pesadelos
num estado de alucinada lucidez
entre as algas da minha intimidade
sítio onde apodrecem os afectos

quase já mudo

passou-me para os ossos e não sai
o deserto sem nexo
hipnotizando o mar acrílico
(é uma solidão (orgíaca) a de ambos)
uma alegria redundando na configuração de um ventre
de água viva

quase amor quase dois sangues da mesma família

ventos e luas e sismos e marés
o último espelho

belo
belo

uma borboleta
um colar de coral

quando ao adormecer
(ou na boca a faca se transporta)
as faces dos amados
formam em cada membro um halo protector

um acaso te faz descoberta
a música é a música é a música
a muralha de urtigas na labareda dos teus travessos

da análise da vida e da matéria
os anos que nos moldam
num próximo sentido

ainda vivo

entrando na penumbra e no exílio

cada vez mais no lençol
até ao centro de tudo o silêncio de tudo

na janela com chuva
alheia à solidão

vagina sem mãe

que nos resta comer a mão do céu
porque amanhece subindo
deitado sobre a cama junto ao sexo
algures o vento
contra os olhos
ventre que a noite invade
num carrinho de bois
como as primeiras chuvas
secreção cremosa que se afirma em combate

as mãos cruzam-se por cima do silêncio numa lenta rejeição do mal-estar
torcem o tempo como um lençol
a mais húmida coincidência dos segredos

respondo-me na volta do sangue

quase no outro lado das trevas
oiço os meus passos
a pouca luz às riscas e as sombras
subindo às ruas da cidade

sonhadora de sangue

a insuportável solidão
grande ferida aberta
que rasga os ombros da noite

paranóia do fogo
possuir todos os graus da relação
este é o espaço destinado a todos
na teia geométrica

árvores num aquário
quem não mora nelas
com seu cuspo de anjo
(o homem que inventei ser
a besta batia no rosto)

não tenho certezas

(death is not na ordinary call)
a luz não é morte vulgar
no ângulo minucioso do fixo perfil
ouço rir a minha amada
ter-se-á narrado então a ventura da travessia
no minucioso detalhe de cada rua
e por elas inscrevo o gosto do tacto pela areia
e a tua boca

no princípio desta noite
as duas vidas
guardam o corpo como algas
no meio de um grande silêncio
outro sol no centro do mundo
no coração
figura primitiva do teu amor
líquidas figuras sobre um rosto branco
protege-me da chuva e do terror
cheira à memória do mar
da terra e o teu sorriso
desse bom senso suicida

já ninguém tem revelações a fazer
nada para perder nada para ganhar
berro
grito
as portas da madrugada
tenho-te como cúmplice
um anjo sujo
levas-me pela mão
(um vidro perfurante)
temos tempo
a morte ainda vem longe
numa auréola azul de violoncelos suspensos

o dia explode
não está ao pé de quem trabalha
apaga-se

uma vida não basta
para termos um rosto
até que ele morra

(tudo existe na sombra
intocável no silêncio da sombra)
os amantes tentam desesperadamente beijar o brilho dos seus olhos
um espaço livre do tempo

espasmo
o céu de boca azul
os lábios do rio
no teu rosto
a saudade que fica
a liberdade do meu corpo
insiste com a crueldade que lhe é própria
e escuta como se estivesse presa a um movimento de acaso

um rio entre as vozes

para que alguém lute por ela
saberão todos quanto custa deixar a metafísica
tudo faço pela minha amada
depois de lamber as minhas feridas
com mil patas
toda a noite
para o último crepúsculo

2001

A partir de Sião, antologia de poesia portuguesa

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