terça-feira, 18 de agosto de 2009

o outro poema contínuo





estes são os arquitectos aqueles que vão morrer.
alguém viera do mar até uma baía fria – que talvez não exista de todas as coisas mortas e o amador e a sua coisa amada são o mesmo grito.
eu não sei como dizer-te que cem ideias a criança a água o deus o leite a mãe e em cada minuto a criatura a suave loucura das uvas sobre o mundo.
a morte sobe pelos dedos navega o sangue e o cheiro da terra.
minha memória perde em sua espuma mais inocente que as árvores mais vastas num estilo de prata livre dormindo e acordando onde existe o meu sangue o perfume da tua noite o lento desejo do teu corpo na confusão da carne.

– e o poema faz-se contra a carne e o tempo

a forma das coisas de um pensamento sobre os meus ombros o espírito caído dentro da forma na inspiração da cabeça onde o ardor da criação guardado devagar se inspirasse daquilo que o espírito calou como luz indivisa – da alegria da minha vida ao tumulto d sombras ao barro vermelho do céu ao espasmo tremendo da inocência onde a lua desce rapidamente transfigurada e traz sua pureza aguda e legítima.
o urdir do tempo – de esplendor o amor feroz para fora da terra o sinal ardente e incorrupto os dedos vazios – e o sonâmbulo desejo do coração é uma coisa materna e antiga carnal irremovível num lugar onde a sombra é gémea das palavras ressoantes que os mortos maravilhosamente pesam no tempo. à beira dos rios canta-se ou deixa-se o sono doloroso. nada sei dos mortos

– porque era de ouro firme e ressoava

loucamente

– a morte é passar como rompendo uma palavra ingénua força da noite das minhas mãos sobre a minha vida.
a minha vida inteira como um livro junto à eternidade pureza do mundo alterosa e quente na minha mão pormenorizada.
a sua dor o lírico de estreitos vasos puros fundamente de profundo fogo do mundo submersos na grande ideia debaixo da noite rolante da estupenda noite são minuto a minuto mais concretos no mundo tão concreto.

na treva de uma carne batida como um búzio e por detrás de tudo num lugar muito puro de uma pessoa. pensa esgota-se nutre-se a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror num tremendo silêncio.
só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes que cantam depois de baterem que a noite de um homem restrito com a sua vida tão lenta da sua terrível vida sem remédio de pálpebras descidas no seu espírito docemente cobertas de sangue – tudo isso e a garganta e a testa de estrelas no pensamento sobre o ruído da ressurreição de toda uma inocência que estremece o homem até às bases.
é a massa de uma estrela aereamente brutal com o terror que há sempre. é terrivelmente profundo é suave completa um movimento e precipita a verdade de um substantivo corpo que treme de melodia selvajaria celeste sobre a minha respiração.
eu posso modificar-me contra o muro humano colocado nas palavras com a cara no sofrimento que atravessamos.
construímos um lugar de silêncio. a idade como em meio de ilusão cerrados lábios até às raízes de suas flores aniquiladas grande silêncio para se habitar só em gestos o êxtase e a força sombria de um animal adormecido uma flor hipnotizada – se era uma pedra um sino. uma vida verdadeira como um dia órfão contornado pela voz entre as águas tão verdes no sono pela vida quimérica das pedras se libertas.
para uma voz dura.
nasce dos pés ou da vulva ou do ânus ou a minha tarefa sobre o tempo. vejo meu pensamento morrendo na escarpada com mulheres puras cujas mãos cujo nome belo e sufocante digo com temor.
rostos como girando sobre gonzos o corpo na luz suspensa que entram na terrível purificação universal. e eu trago uma criança com um ombro entrando no poder de deus porque um poema alude ao mistério o sangue passa por toda a doçura como a época leve que entra e é preciso esperar enquanto se morre.

eu sei: quero dizer: eu amo respirando sangrando tanto como uma pedra sobre a boca ou o sol que a lentidão gritava que era alto tão tão alto – o amor.

e talvez seja este o último exemplo e não sabemos escutar o barulho de uma inconcebível existência.

alguém chama por si próprio alguém procura onde eu estou só e encontra uma emoção escura por uma ideia onde em pensamento no lugar do silêncio dentro de mim.

trabalho de encontro à noite quando já não sei falar e acabo. é no fim que secamente falam do ardor na pedra sinistra fria da raiz sombria.

eu oh nem se do espírito de um homem que foi assassinado se adormecesse deveria ser acordado.

gato dormindo debaixo de um pimenteiro em janeiro eu queria dizer. no lugar onde escrevendo eu sei janeiro com outono sonha então. o alfabeto a lua ao contrário sonhando com tanta força e nunca corria o tempo pelo ar e era o tempo uma palavra antiga escorrendo como uma gota um girassol do mundo pela noite dentro.
então acordo de dentro e lembrando fico roendo maçãs respirando no ocidente – e as grandes redes metiam as redes pelo espírito de deus abaixo.

os malmequeres dormiam nas mãos e disse: fogo
vestido
cidade
areia
enquanto através alguém ia gritando na noite sensível – louco louco –

rosas enoveladas vergavam no sono maravilha fatal da nossa idade como quando a figueira lança os seus figos verdes presos pela boca violentamente brancos os mortos amadureciam e seres arrastados do céu da boca para liberdades liberdade são palavras pronunciadas com medo de pousar no silêncio por trás uma atrás da outra e o céu.

bate-nos o nome para lidar o lento acordar das vozes submersas: uma treva.

são outros mortos ainda das aranhas no fundo têm medo de nascerem belos os vivos e os mortos que ainda não tinham entrado no mundo minúsculo medo uma névoa sensível uma ah uma catástrofe que engrandeça como os outros animais de confusão do amor posterior a respirar tão depressa e a andar tanto e a correr de energia rápida: a magia os segredos comendo uvas negras.

– a aliança intrínseca de um pénis e de um ânus um pouco abaixo do silêncio. quero saber com tudo ordenado em si a energia dos pontos como as malhas dos pulmões onde saltava em suas grutas tremendamente claras planos de energia e de tristeza cabeças em delírio e essa crispada lentidão acetilena que subia passada por manhãs em sopro.

saber o que se esquece em som rápido
vozes
de folhas tumulto branco sobre a febre e pinhas

não é um sentido propiciatório da linguagem é uma espécie de cinema das palavras do pavor e nenhum arrepio de horror sequer um “transe” e digo assim porque se trata do princípio “de cima para baixo de baixo para cima” mas sempre em cima da cabeça estamos para ver corpo que se faltava em tempo “fotografia”.

para seguir até ao fim “com olhos” uma coisa completamente viva e completamente distante uma leveza indomável uma leveza é uma “linguagem” e energia e delicadeza atravessam o ar.

de nada em nada gozo “básico” de “estar a ser” o medo como se fosse mel a escorrer do crânio por dedos “negros” em todos os “sentidos” brutais sem vícios de beleza ou graça depois a alegria total de uma tentação dos dedos e pensa-se que se há-de encontrar “um nó” da “resposta” quando tudo pergunta “onde” à “coisa” para saber dessas coisas e depois apenas “o corpo” onde é o sítio de nascer “sobre” a “escrita impossível”.

tudo estava no “sítio” certo onde não estava

uma vez pensara:”que o corpo permite o corpo” e o ar como deserto a ver se dele irrompia pois também somos a vítima da nossa vítima – como um buraco dentro de um buraco no ouro dentro do ouro como cada coisa é a metáfora de cada coisa – estive agora na memória com seus fulcros de oxigénio e o sistema planetário de pés e mãos para o outro sob os dedos como um nervo puxado pelo avesso como os olhos das casas e queima-se em mim nervo a nervo fio a fio as omoplatas em arco.

pulsava o ar nas costas sob o choque do ouro estagnado no tórax e o rosto que jorra do espelho que sai assim do corpo em torno do sexo.

rosas expiram pelo intenso orifício no meio do sangue na dor e na paixão – porque as labaredas se despenharam nos espelhos da terra o olho activo de uma flor sonhada – o movimento das casas com os castiçais contínuos como artérias na voragem entre a boca e o ânus como os arcos de um espelho – e atrás a queimadura do rosto olhando e côncavo pelas mãos de um tigre: e depois deixar cair esse rosto sustentado atrás – na sua firmeza: inocentes – isso fazia medo.

como que em música como que força pura quando nasce quando a cara: sussurrando ou beleza asserbe de um rosto já sem fronteira porque é tudo sublevado para o olhar.
dizem que o mel novo enlouquece as pessoas. a dança por membranas que respiram com luz.

quem vê a queimadura onde a voz rebenta na carne como rostos que se aproximam com as fendas com a fundura cristalográfica das caras da minha cara entre a força dos rostos que tem contra deus.

se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão se a corda fica aberta no mundo entre o sangue estrangulado na minha memória onde é tão feroz agarrado toda a cama os poros nas trevas do coração – toda a minha mão se assusta que respira no sono que transpira como um sexo trilhado – porque eu morro da minha vida grave: a longa pálpebra o espelho e a imagem como pelas artérias se cose no meio da carne como no fundo da noite os obscuros fulcros da loucura.

é o incêndio na minha cabeça – às vezes as fendas do seu sangue abismado – às vezes com todo o peso do coração no centro completamente vivo espelhos vivos teias máxima visão no abismo de um planeta de quartzo na escuridão das causas.

para dançar uma noite que trema pelo poder astronómico a fábula da demência e da animal chaga como uma enorme estrela.

não te queria quebrada pelos quatro elementos da terra do terror o leve poder da lua apenas queima os olhos.

la beauté s’ouvre les veines

levanta as pálpebras como um clarão assim a estrela com dois membros toca-te toda: tocas no chão no corpo um sopro elementar: uma pálpebra respirada que toda a noite do mundo te torne humana: brilhando tudo estremecendo fincada no chão como uma estaca de peso e graça se a matéria crescesse.

– ó raiz transpirada dos meus braços até às amígdalas do mundo estrela aberta por todos os lados as labaredas atravessam as membranas pela coluna vertebral.

– o ceptro que nos crava no mundo com um arrepio de unha a unha a morte está tapada em qualquer parte da terra: ou entre os braços côncava a aorta sorvesse a matéria.

das vozes fechadas os olhos: e as moléculas negras. a criança do retrato a iluminação que a água parada faz em mim é a atenção nos dedos: da morte engrandecendo a mão voltaica.

ficas toda perfumada de passar por baixo do vento que vem quando os meus dedos te fazem num mistério de baptismo habitante de um nome porém ficaste sucessiva e eu abro a pedra para ver a água estremecendo de átomos. embriaga-se à volta das mesas essas que crepitam as palavras com bolhas dos pulmões à boca essa luz feroz na alma húmida uma ciência a sangue. o sítio ainda agora no cérebro a cara amarga estremecendo como sangue dos braços em raio de estrela.

– de nome em nome passam por mim os sopros até cada coisa mergulhar no seu baptismo tudo se ilumina da altura de uma pessoa imóvel a mão convulsa manobra a vida máxima mas a doce e dolorosa mão que ergue a fábula a estrela de água entre varais de sal no fundo onde fico cego nos alvéolos da boca… escondo a cara. a voz fica cheia de artérias essa dádiva infernal fechada na metáfora fora e dentro inauguro o nome de que morro. assinar: demoníaco – com todas as letras – uma frase uma ferida uma vida selada eu falo o idioma demoníaco eu tenho a temperatura de deus – era um louco meteorológico.

“a criança falou da personagem laranja fogo através do campo”. ela disse: a vista fica rodeada pelo ar aproximam-se tanto. amor se a porta na muralha de esmeralda – sim eu sei queimam-se de olho a olho selvagem mas não se movem no chão o buraco da estrela –

se eu pegasse na cabeça se eu ressuscite a frase ocre africana quem sabe quantos nomes que eu não posso aflorar – a descarga queimaria tudo: porque é o mundo vibra tendão a tendão na pedra acende-se o cabelo mãos faíscam: cada soberano como um negro com boca de ouro leão estrela criança louca com tanto peso.

alguém sai para os jardins miraculoso com o espelho.

eurídice pelo coração. amor abre-me os feixes na testa com as unhas rútilas esse poder inocência morte. meu amor do reino animal amor eu digo – amo-te para erguer de ti a música para calcinado em cima se deslumbrarem com o demoníaco. são os indígenas do ouro dos elementos. vejo tanta seiva escoando-se pelos orifícios. absoluto aliança poesia a mão que vem da lenta loucura. um dia tocaram-se nos centros doces abrasados vi a árvore astral defronte com as bagas no escuro nos espelhos inocentes e ser leve e amado abrir as portas por um nexo da fala pequena com a fala que se inspira de tudo: este movimento no chão responde em labaredas a dança ensina ao alto a astronomia – o teu espaço luminoso – e transformas-te – alargas os braços apanhando a claridade onde a ar enflorado entre os cometas sobre montanhas e a sua água a uma obra o torso a uma devagarosa mulher no mundo. porque eu sou uma abertura alguém com os dedos na cabeça dando volta à criança as mãos embriagadas porque a criança atravessa tudo e já toca no centro de si própria do mais profundo para o mais leve na obscuridade.

quero na escuridão revolvida pelas luzes e na voltagem da luz transferir-se para outra chaga atrás do paredão de um astro.

a demora dos nomes da claridade e da carne: o sangue que entra e sai por um lento tão ligeiro na chaga como quem apenas soma a lua contra o lado frio da água e eu sei tudo e esqueço.

alguém levanta-se de um sonho e nos sítios culpados da maior existência de deus a flor chamada chaga dúctil dócil melhor: imagem unânime do mundo das vozes das luzes o bafo e o fogo no princípio.

assim escrito: o choro.

a que chamo por enquanto um espelho em frente de um espelho: imagem num único nó do corpo.

trabalho um nome o meu nome a dor do sangue se morro é por exemplo. não peço que o espaço à minha volta se engrandeça – e então morro do que nasci na boca para o potente e o suave do mundo: poema do começo a árduo sopro.

2002
A partir de Poesia Completa de Herberto Helder

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