terça-feira, 18 de agosto de 2009

Não esqueças a minha fala nunca





fluía um canto de embalar do rumor das águas
que é possível em Abril
pela alegria chã de respirar,
e não há palavras nem há preces
uma paixão que se solta
onde todos estão sós lado a lado!
talvez tu de mim não queiras nada.
eu não podia estar no nevoeiro
pensando ouvir à borda do abismo.

medo é mesmo do vazio o sentimento
para o ocidente e para o oriente?

também um dia criarei as coisas belas
não ouvi, nem provei do vinho antigo,
vejo de altura divina a cidade.
morre o homem. a areia quente esfria
toma de minhas mãos para tua alegria
quando sai para os céus a lua citadina
por sobre a areia como se fosse uma maçã…
é-me difícil falar – nada vi, mesmo assim
que grande medo temos, tu e eu
e flores pré-invernais, inchadas rosas,
e aqui é apenas um desenho
– como desenho de um menino –
todo o amanhecer dos dias, nos confins

a rosa tem frio à neve
e no labirinto da cantiga da água
em que os primeiros homens estudaram,
predadoras línguas da cidade-adobe,
a tudo o que viste, esquece.

espero as visitas noite dentro, noite morta,
só um infantil fio me ligou ao mundo opulento
uma faca aguda, um pão redondo inteiro…
ajuda-me Senhor! a chegar à madrugada,
as pestanas a arder. no peito lágrimas contidas,
da alegria e da honra banido.
sem fim de manhã à noite
p’ra quê tudo? tanto faz
fila-me o ombro, puxa-me p’la mão
mas com que brindo, ainda não inventei – é consoante
não é enxaqueca, mas chega-me a pomada das dores
guarda a minha fala para sempre, p’lo gosto a fumo e mágoa
até bafo quente saturado.
é um dó de alma a estupidez de ontem
e quando chegamos enfim à meia fala
não há p’ra onde fuja a gente
tanta e massacrante raiva
brinca o ar meio acordado –
talvez antes dos lábios o murmúrio já nascera
e eu sou, vela negra, para arder por ti
no janelo a cortina, fogo na cabeça.

gostava de instalar-me – agora mesmo, entendes? –
no tempo em que era menino – brincava o pavão com ele –
na rocha mais dura que pão – cenas da floresta moça

ainda não morreste, inda não estás sozinho
vai para lado nenhum, eu venho de lado nenhum
se as pessoas não falarem comigo
onde me meto este Janeiro, ó cidade?
mergulhei muito no tempo e emudeci.
amigo em vida de todos os vivos do mundo,
se eu não sou de todo útil e nem pertenço
perdoa o que digo, por uma vez só…
por habitar tanto desgraça em teu bocal
e que este arder recomeça eternamente
tudo o que será – apenas uma promessa.

2008
A partir de Guarda a minha fala para sempre de Ossip Mandelstam

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