domingo, 25 de janeiro de 2009

António Gancho






Andei um pouco indeciso, neste início de ano, sobre que livro me debruçaria. Pensei num, depois noutro, já lidos há tempos, mirei e remirei a minha estante desfalcada (teve melhores tempos) tropeçando nas lombadas dos livros lidos de Dezembro até hoje (23 de Janeiro) que, felizmente para a estatística da cultura, foi um número satisfatório, pedindo desde já desculpas se parecer arrogante, o que não é de todo o caso – aqueles que me conhecem sabê-lo-ão melhor que eu próprio – mas, tratando-se apenas de uma verdadeira paixão para com os livros. Gosto de ler, confesso, e procuro ler sempre que posso seja o lugar que for, bem como escrever (embora neste caso, para minha tristeza, não com a frequência que desejava). Daí, perceberão então, a minha indecisão, o meu adiar e deambular pelas palavras atrasando as apresentações – que, no fundo, é o que isto é e nunca verdadeiramente uma crítica – sou um péssimo cicerone.
Pensei num então, que fala do mar e de ilhas e que, quando viajo de carro pelo Alentejo, é o que recorrentemente me ocorre, mas deixá-lo-ei para uma próxima ocasião, tal como uma cena dos próximos capítulos cativando a atenção dos espectadores (neste caso dos leitores). Por isso falarei de uma ilha que foi um homem: António (Luís Vicente) Gancho.
António Gancho (1940-2006) deixou-nos e dele resta-nos, até hoje, dois belos livros, uma colectânea da sua poesia, “O Ar da Manhã”, e uma novela, “As Dioptrias de Elisa”. António Gancho, poeta Alentejano, nascido em Évora, e ninguém fala dele. Nenhuma rua, nenhuma tabuleta com o seu nome naquela que foi a sua casa. E sim, eu sei que é comum a queixa de esquecimento a que muitos artistas são votados, mas a realidade é que há uma razão para essa queixa. A memória de Portugal, como a de qualquer um de nós, é selectiva e quando chega à cultura não é nada carinhosa. E sim, também eu não fujo a essa selecção. Entre tantos escolhi escrever sobre António Gancho, esse poeta que privou com Álvaro Lapa, António Charrua, que frequentou o “Café Gelo”, ponto de encontro daquilo a que alguns chamaram de “Abjeccionismo” (Cesariny, Herberto Helder, Luíz Pacheco, João Vieira, entre tantos outros), que morreu no dia em que completaria trinta e nove anos de internamento no instituto psiquiátrico do Telhal, nos arredores de Sintra – embora com mais alguns anos em cima não contabilizados. Mas falemos dos livros.
A porta de entrada de António Gancho foi aberta pelo próprio Herberto Helder, esse poeta nocturno, na sua antologia “Edoi Lelia Doura”. Esperaram-se mais uns anos e no início dos anos 90 chega-nos “O Ar da Manhã”, colectânea de toda a sua poesia desde os anos 60 até aos 80. Ali encontramos uma voz realmente única. Contudo, poderia dizer que, uma vez abraçado pelos surrealistas (assumidos ou companheiros de viagem) e outras vanguardas, um “louco com pendor artístico” facilmente encontra editor. Não creio que este seja o caso (embora acredite que amigos são sempre necessários). Podemos, de forma clara, descobrir traços surrealizantes na sua poesia – mas também o que a teoria e a crítica muitas vezes nos mostram, é que podemos descobrir o que quisermos onde quisermos – todavia, essa é uma leitura redutora da força da sua poesia, do trabalho na e da linguagem, os ritmos, os jogos (esse tom surrealista revela-se principalmente no bloco de poemas “Poemas Digitais”, onde se lê esse tema bastante “batido” do amor louco). Não são poemas confusos, de todo, antes luminosos, leves, humorados, poemas com a felicidade da vida que ele próprio não teve.
Esse humor aprofunda-se na sua novela “As Dioptrias de Elisa”. Esse pequeno livro – e nunca pensei usar esta palavra – é um encanto, de vários sentidos. Gancho canta os amores e desamores de uma vesga, com dioptrias que distorcem a realidade (a sua por excelência). Elisa nunca se viu como uma bela mulher e, no entanto, casou-se e deu filhos e pensando a sua vida já acabada na monotonia consegue, mesmo assim, despertar um enorme desejo num jovem mais jovem que ela. Gancho canta-nos isso como se estivesse sentado ao nosso lado, ali mesmo, quase sussurrando a história, a poucos centímetros de nós. Canta como se conta uma história, repetindo palavras e frases no entusiasmo da revelação, no nervoso que não se doma, não se impede, que pede para ser contado. E há igualmente encanto na forma como o jovem e Elisa se encontram e se entregam um ao outro, com a intervenção de um velho que indica e mostra ao jovem como agir para conquistar a mulher amada/desejada. Como não pensar no velho e identificá-lo ou assemelhá-lo a um grego ou romano vidente ou deus humanizado, transformado em homem, ajudando o “herói” na sua demanda ou viagem – mas este não é o espaço para esta aventura teórica. Por fim, o local da acção, não poderia esquecer, porque li o livro nos meus primeiros anos em Évora e calcorreei as ruas (d)escritas.
Fica assim apresentado o poeta e os seus dois livros, porque os mortos vivem pelos vivos e parafraseando o louco da “Orfeu”: António Gancho não é louco, é assim esquisito.

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