quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

pantagruel





AUTOR: François Rabelais
TÍTULO: Pantagruel
EDITORA: Frenesi


São muitas as maneiras de nos darmos a conhecer a alguém, tantas quanto o número de pessoas que existem, existiram e existirão. Não digo isto por brincadeira, acredito veramente que assim é. Não se trata, pois, das várias expressões que usamos no dia-a-dia. Essas frases temo-las como bem conhecidas e repetimo-las sem muito pensarmos nelas. Mas nessa repetição de expressões há todo um jogo de diferenças na relação entre a língua de que fazemos uso e o nosso corpo – posturas, modulações de voz, ritmos de empatia sujeitos ao momento (conhecer ou desconhecer a pessoa à nossa frente), etc. Não há, assim, nenhum modo certo de nos darmos a conhecer ou de conhecermos alguém ou uma coisa. Existem, claro está, certos acordos sociais, como os de boa educação, respeito, entre outros. Por isso, não façam caso da forma com que vos falo de autores e dos seus livros. Cada um nos chega e os apresentamos com todos os factores em jogo, desde a marca que nos deixou à evolução natural e estabelecimento de morada dentro de nós, até nos surgirem à boca e os oferecermos à descoberta do leitor. O processo que mais me dá prazer… não o direi, mas nunca recusei a leitura de introduções e prefácios. Por essa razão, para apresentar Rabelais e o seu Pantagruel, sigo o percurso da excelente introdução, do também excelente tradutor, Aníbal Fernandes (são sempre esquecidos os tradutores se não forem escritores e poetas conhecidos).
A discussão é muita mas continua incerta a data de nascimento deste autor francês do séc. XV e morto no século seguinte com cerca de setenta anos. Da sua biografia sabe-se que foi filho de camponeses abastados, teve formação clerical (daí a sua vasta cultura literária, filosófica, historiográfica e religiosa), viajou muito, foi médico, perseguido, protegido e viu os seus livros apreendidos e expurgados pela grande Universidade de Paris, a Sorbonne, e pelos teólogos. A sua importância no plano cultural e literário só ganhou verdadeiro relevo a partir do Romantismo. Contudo, vingou e é inegável o epíteto de clássico da literatura (não esqueçamos, por exemplo, que do seu nome e da sua obra nos ficam igualmente na língua dois adjectivos). Foi, portanto, um homem que viveu o Renascimento, quando essa palavra ainda não queria circunscrever um movimento literário, filosófico e artístico devedor das leituras, releituras e traduções dos gregos e latinos da antiguidade e dessa fabulosa invenção revolucionária de Gutenberg.
Mas afastemos ilusões, o “renascimento”, esse “centramento” e “descentramento” do homem e do conhecimento, respectivamente, não era para todos, há coisas que resplandecem porque há demasiada sujidade à volta. Rabelais viu isso muito bem, uma mancha em todo o brilho, um reluzir em alguma imundície e disso fez uso para nos legar a sua obra. Rabelais é a festa, a paródia, o Carnaval da língua. É a mistura da mais alta com a mais baixa cultura, fazendo conviver o vernáculo com o culto, dialectos, línguas estrangeiras, o latim e o grego, para inventar e revolucionar tanto a sua língua de origem, como a linguagem literária, enquanto goza com os seus inimigos e detractores, com os detentores da cultura.
É por essa via, queremos dizer, esse “entre”, essa fronteira pouco definida, que nos chega Pantagruel. Se, por um lado (o lado da alta cultura), temos o espírito, a altura, o bom-tom, por outro lado, temos o corpo, o chão, a rudeza da linguagem. Ora, Pantagruel é um gigante de linhagem nobre, filho de Gargântua (de idade longa, “quatrocentos e oitenta e quarenta e quatro anos”) e de Bocaberta, filha do rei dos Amaurotas da Utopia. Se o pai é o excesso na comida, Pantagruel é o excesso na bebida (estranho é o facto de os livros de culinária serem pantagruéis e não gargântuos). Mas longe de nós a ideia de que, por ser gigante, a sua relação com os homens está de qualquer modo impossibilitada. Bem pelo contrário, quando chega à maioridade frequenta a universidade como qualquer fidalgo, o seu tamanho adapta-se à vida humana para conviver, divertir-se, entrar em bibliotecas, discutir em praça pública, até mesmo presidir um julgamento em tribunal. A sua história segue a par e passo a estrutura de uma qualquer epopeia clássica ou crónica, mas numa completa inversão de valores morais. Porque Pantagruel é, acima de tudo, um corpo. Não só corpo de conhecimento (o mais sábio de todos os sábios, incontestável em todos os conhecimentos), mas corpo de prazer, de desejo, de força, de vida. Embora muito crente em Deus, ele é o mais profano e escatológico de todas as personagens (talvez exceptuando o seu companheiro mais próximo Panurgo, uma espécie de Sancho Pança ou o Jacques de Diderot, com as suas devidas diferenças), porque trata-se afinal de viver a sua vida no seu máximo, praticando o bem a quem merece e apontar e desancar o mal onde ele existir.
Quando escrevemos Carnaval, não foi por acaso (existe um estudo impar sobre Rabelais ainda por traduzir, bem como o resto da sua obra, do teórico da literatura russo Mikhail Bakhtine, que versa exactamente sobre a paródia e o Carnaval no escritor francês). Se o toque de Midas “aurificava” as coisas, o toque de Pantagruel “carnavaliza” o mundo. É não só a carne que se revela, quando sonoramente nos vem à cabeça a palavra carna-val, mas também a inversão que se manobra momentaneamente trocando as posições do “baixo” e do “cima”. Exemplo dessa carnavalização é o cap. xxxi, em que o Rei Anarca, após sua derrota, é tornado, através da mão de Panurgo e com o consentimento de Pantagruel, em “pregoeiro de molho verde”. Ou então, essoutra da língua, nos cap. xi e xii, um desvario tal que somente séculos mais tarde, com Lewis Carrol e o “automatismo psíquico” dos surrealistas, se encontra na literatura. Ou ainda a discussão filosófica por sinais no cap. xix, talvez a mais importante para o homem mas que nunca viremos a saber…
Como em todas as apresentações fica sempre quase tudo por dizer. Rasamos sempre a pele e só um ou outro pormenor, algumas impressões, se gravam na memória. Espero apenas ter-vos causado a vontade de ir beber um café com Rabelais e Pantagruel.

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