domingo, 21 de dezembro de 2008

Entre o vivo, o não-vivo e o morto, nº1





AUTOR: AAVV (sob a direcção de Paulo Serra
TÍTULO: Entre o vivo, o não-vivo e o morto
EDITORA: CEPiA – Centro de Estudos Performativos i Artísticos


Este mês, se me for permitido, se não me levarem a mal, os poucos que se têm interessado por esta página, caros ilustres leitores, falar-vos-ei, não de um autor e do seu livro no amplo mundo da literatura, mas numa revista recentemente editada pelo CEPiA – Centro de Estudos Performativos i Artísticos, uma associação cultural sem fins lucrativos sediada em Évora, e sob a direcção de Paulo Serra (um ex-aluno de Filosofia da Universidade de Évora).
A dificuldade de falar sobre este objecto literário é bem maior do que se imagina. Por um lado, estamos perante um corpo a várias vozes, plurilingue, várias mãos e seus vários dedos puxando fios, que se cruzam, que se tocam, que correm lado a lado, cada um no seu labirinto. Por outro, sujeito ao seu recém-nascimento, nesse tactear titubeante à descoberta de um lugar – que o próprio nome da revista indica, entre o vivo, o não-vivo e o morto, um ser-estar-aí-qualquer-coisa, mas entre, exactamente, qualquer coisa, num espaço qualquer, indefinido, que paira, sobrevoa, resta num limiar desconhecido – ele próprio parecendo não oferecer um espaço para morar, ele próprio lugar no ou do limiar (a crise da literatura tem a idade do seu aparecimento), dificulta a sua apresentação pela inerente fragilidade do seu aparecimento. Aqui não há lugar para grandes digressões históricas, contextualizações, etc. Tal como o seu nome, falamos à semelhança da circunstância do acontecimento – como contextualizar ou historicizar o aqui e agora, como enclausurar a névoa da manhã, como guardar a espuma da beira-mar? – porque, afinal, é disso que se trata, um acontecimento de se louvar numa região, o Alentejo, em que o movimento cultural é escasso, rareia, é lento, quase pontual (talvez devêssemos mudar o termo e em vez de movimento, o que suscita uma ideia de dinamismo, de inquietação constante, dizermos, por exemplo, pontilhismo ou pontualismo cultural, constituído por gotas esporádicas e os seus ecos).
Formalmente, o seu aparato visual, o grafismo, o seu aspecto exterior, a revista lembra-nos as fanzines dos subterrâneos onde ferve a contracultura (o dito “underground”) e os trabalhos manuais do “faça você mesmo” punk (diy – do it yourself). Mas nem toda a inspiração é uma cópia em época de revivalismo. Pelo contrário esta é uma revista de apresentação cuidada, longe do aspecto xerox alternativo da normal fanzine caseira, bastante sóbria (preto, branco e algum amarelo) e tipograficamente normalizada. De igual modo, outro aspecto a salutar é o facto desta revista, ao contrário de muitas outras, ter realmente o propósito de ser lida e não dar demasiado valor ao fausto visual (peço imensa desculpa por este desabafo, é que há certas coisas na moda que me irritam profundamente neste mundo por demais visual que é o nosso, daí ter simpatizado com este projecto logo a partir do editorial, onde se pode ler, por exemplo: “Apesar da «entre o vivo, o não-vivo e o morto» ser semestral não tem uma duração para ser lida. Não lhe vamos dar uma velocidade, já chega! Ler é, entre muitas coisas, o quebrar da velocidade que nos é imposta diariamente e constantemente”).
Isto leva-nos aos textos que a compõem. Dissemos já que é tecida a várias mãos (talvez nunca mais veremos revistas como as de Karl Kraus ou de Arthur Cravan, de inteira responsabilidade própria), talvez por essa mesma razão não se rege por uma temática, senão a de querer agir sobre o campo da cultura – um pequeno desvio: André Breton disse uma vez num dos seus manifestos, mal sabia ele o alcance da sua visão, que o maior gesto surrealista seria sair à rua e disparar ao acaso sobre a multidão que passa; prendo-me, pois, a essa imagem no que respeita a esta revista, ela é um dos revólveres de cabelos brancos a ser disparado em várias direcções.
Os textos que a consubstanciam são de índole e qualidade variada, mais intimistas (Narciso), prosa livre (BorboletaSS), poemas (Introdução ao perfilamento, Bênção), crítica cultural ao modus vivendi português (Acerca da neo-totemização da relação povinho - selecção nacional de futebol), alguns de teor ensaístico filosófico ou literário (Filosofia e ecologia, A memória, Fantoches fantoche, Abulia e grammé), passando pela crónica pessoal ou histórica (Os olhos do puto, Vida e Obra de Matos Oliveira, As bacantes e o Amor Louco), bem como uma excelente entrevista ao realizador russo Alexander Sokurov (A imagem como destino). É, portanto, uma revista que cobre um largo espectro de temas sem se saturar ou se repetir, sem se vergar ao academismo pesado, que requer sempre um leitor especializado, nem ao fast-food literário e cultural das revistas da moda. É uma revista para se ir lendo e degustando.
Para os interessados resta avisar o seguinte: a entre o vivo, o não-vivo e o morto não se encontra nas livrarias nem tabacarias. Para a receber terá que escrever ou para o seu director, Paulo Serra (pjfserra@gmail.com), ou para o CEPiA (geral@cepia-web.org), ou até mesmo dirigirem-se à sede da associação na Rua Bernardo Matos, nº6, sendo o preço da revista 3,50€ (três euros e cinquenta cêntimos). Arrisquem.

Sem comentários: