quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Maldoror





AUTOR: Isidore Ducasse Conte de Lautréamont
TÍTULO: Cantos de Maldoror, seguido de Poesias (Chants de Maldoror et Poésies)
EDITORA: Fenda Edições



Teria aí por volta dos dezoito anos quando o li. Lembro-me. Quero dizer, tenho uma impressão de o ter lido por essa idade. Por isso, talvez até tenha sido aos vinte. No entanto, pertence absolutamente ao bloco das minhas leituras saídas da adolescência, disso não tenho dúvidas, bem como das minhas releituras quando ando mais desatento aos escaparates, ou mesmo, pela razão de me ter tocado tanto, o ouço chamar das minhas prateleiras. A segunda vez li-o em Paris e, por ironia dos passos e dos acasos, encontrei o autor dando o nome a um Terrasse (tirei imediatamente uma fotografia descartável, fotografia essa que, ao contrário do livro, raramente ou nunca vejo).
Refiro este último facto porque o acho estranho, no caso deste escritor. Isidore Ducasse Conte de Lautréamont, nascido em Montevideu em 1850 e desaparecido (é a palavra certa, Lautréamont “desapareceu antes de morrer” e, se pensarmos nos escassos registos da sua existência exceptuando a sua obra literária e algumas cartas escritas aos seus editores onde figura a sua assinatura, dele pouco se sabe, aliás, Salvador Dali pintou-o como mulher) em Paris no ano 1873, não faz parte dos cânones literários, dos clássicos, mas sim das margens da literatura, das vanguardas do início do século XX, trazido à luz por André Breton quando planeava o surrealismo. Mas bastará a voz do ido Papa dos sonhos e do Amor Louco suficiente para que um dito “autor menor” conste na toponímia de uma cidade como Paris? Bom, talvez sim, em França, porque está lá. Mas será só por isso? Eu, por mim, digo que não.
Lautréamont deixou-nos uma obra única (dir-me-ão que todas elas são únicas e eu concordo), ou melhor, uma única obra, um díptico, se excluirmos as cartas acima citadas. De um lado, temos um longo poema, Cantos de Maldoror, elogio do Mal, cheio de estupros, desvios de menores, mortes, horrores, monstros (não se assustem, é só um livro, ou assustem-se porque, afinal, muitos livros são mais do que livros), escrito num rigor lapidado, numa língua cuidada, que nos sova o corpo, nos ruboresce as maçãs do rosto, nos faz tremer perante a beleza com que o feio e o degradadamente nojento, o mais baixo, pode ser sublimado à categoria do Belo. Salta à vista a sua ascendência, Milton, Blake, Baudelaire, pais que se amam e se renegam, como mais tarde se descobre. Maldoror – como esse nome se enrola na língua, sugerindo, só por si, tantas imagens ao trocar-se a ordem de algumas letras – reconhecemos imediatamente a personagem, uma espécie de anjo caído das hostes do exército satânico de Milton, bobo brincando com a criação de Deus, homem desiludido e à procura de amor (corpo amado mudando de figura, mas talvez sempre o mesmo, a meretriz, um tubarão fêmea, um adolescente), um destino suspendido.
Do outro lado, quase um tratado, uma Poética, as Poesias. Uma obra pequena mas imensa na sua força, na intensidade das expressões e das ideias, prevendo a poesia futura (o subtítulo desta obra é, aliás, citando de memória, “Prefácio para uma poesia futura”), uma escrita aforística – os tão celebrados cadavre exquis surrealistas encontram o seu mote nesta simples frase: “A poesia deve ser feita por todos”. Não mais o Mal, mas o Bem, não mais o feio e o torpe, mas o belo e o elevado. Se nos Cantos Deus é contestado, nas Poesias temos a impressão que para Ele se caminha – ou será, de Ele se volta? Os pais, como eu tinha dito, são banidos. Lautréamont critica, acintosamente, tanto os poetas acima referidos como os seus leitores, como se nos dissesse: “Deixemo-nos dessas infantilidades de crianças mimadas e, de uma vez por todas, interessemo-nos por aquilo que realmente importa: a beleza da simplicidade que a vida verdadeiramente é”.
O que resta então da leitura deste livro? Antes de mais, o espanto perante a revelação da imaginação, a perfeição da escrita (é de relevar a magnífica tradução de Pedro Tamen) e o pensamento crítico-filosófico de um jovem entre os vinte e os vinte e três anos. Depois, o resumo que ainda me ressoa da primeira leitura: não há real separação entre o bem e o mal; o conhecimento desses dois conceitos faz-se pela contínua travessia de um ao outro, desconhecendo onde, afinal, nos encontramos, de tal maneira estão mesclados um no outro fazendo-se um só. E por fim, existe uma delicadeza no olhar a vida que nos escapa se somente repararmos nas tristezas que ela pode trazer, mas não a reconhecemos sem passar por esse lado negro dela mesma.
O Belo não está só do lado do Bem. É uma lição demasiado cruel, talvez. Talvez devesse tê-lo lido nos meus catorze anos, talvez. Vistas bem as coisas, nunca é tarde nem cedo conhecer um desconhecido.

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