sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

última carta de aniversário

lembro-me desse pensamento. não
não me interessou. nem um estremecimento
e esvaziámos copos como fazem os bêbados, enchíamos, e de novo esvaziávamos
um contacto através do movimento de vaivém
fiquei num jardim com o meu amigo
porque tu não estavas lá
ergo o olhar – como para encontrar a tua voz
o que é que te salvou? talvez os teus poemas
foi um exercício, mas insuficiente, e de todo inútil
de novo sem nenhum sentimento
no teu refúgio. e as tuas palavras
da noite e da festa. eu tinha previsto
sobre o teu rosto, sobre a tua cicatriz. E o teu rosto –
com a fúria
uma mecha do teu cabelo, o teu anel, o teu relógio, a tua camisa de noite
caíram como um jorro
a vítima numa calma euforia. ainda a sorrir

vivi ali sozinho. sentei-me sozinho
nos dias que se seguiram, derramando as tuas lágrimas
um normal jogo de crianças para uma paixão séria
e eu fiquei consciente do mistério
como nome secreto e senha –
a escuridão devorava-te. e o medo
à procura de ti própria, na escuridão, enquanto dançavas,
afogando a vida e o teu esforço para te salvares,
era tudo o que eu tinha, o meu caderno e aquele colchão.
e ainda hoje medito – embora já tenha dúvidas
como aquelas que, precisando de proteger a sua casa
porque os antecedentes iludiram as tuas expectativas

e todas as coisas erguem os braços e choram.
vi o meu mundo de novo através dos teus olhos
e antes que alguma coisa pudesse macular alguma coisa
a um tempo verbal estranho: o futuro enfeitiçado
a maior parte da minha vida, diria. enquanto tu
estendida sobre o teu deus de pedra.
com o teu mistério – desenhavas, como que às apalpadelas
era a terra dos teus sonhos: o cadáver de poeira vermelha
num mundo feliz, com a vida inteira à espera
um pedaço de lua brilhante.
como se te estivesse a ver pela primeira vez –
caído na margem do mediterrâneo.

desenhar acalmava-te. a tua infernal caneta era um atiçador,
e as tuas longas pernas, morenas, onde apoiavas o teu bloco,
por onde espreitava o brilho intenso da insolação
até à tua boca, indefesa como o bico de um passarinho, delicadamente
suportavas um peso excessivo. e eu não disse nada.
tentei apenas não inalar o fantasma
caminhei penosamente pela escuridão do arco-íris
para contemplar o teu rosto, dando alguns bramidos ocasionais

como é que conseguiste parar? não me lembro
escureceu em solene receio
finalmente tudo a postos, a ganhar coragem –
perguntei-lhe eu. «este poema», afirmou ele,


eu estava assombrado. pensava que me tinha
com as pupilas rasgadas por um punhal. deixámo-la
mais além do reconhecimento ou da salvação,
por aquela vertente da encosta para ir ver os amigos –
com ciúme, aspirando fundo. não eras
a urze, inquieta na sua febre,
tão distante de mim, durante todas aquelas semanas de intimidade
e foi quando gritei: «este é realmente o meu primeiro esquilo» -
só tinhas de olhar

terá sido um dia feliz para nós? quando fomos a remar
encrespando na manhã luminosa
só fizemos o que a poesia nos disse para fazer.
naquela primeira manhã
para sempre, para sempre
libertos, tranquilizados, regressados à superfície, os teus olhos
que saía dos teus antigos eus como roupa interior
que era a tua Ave do Pânico a querer sair do ovo,
o teu despertador, uma nova frase
surgiu – por momentos
a arreganhar os caninos e a rosnar triunfante,
choraste
e escutei-a com a gravidade dos cemitérios
para o acontecimento da manhã – entrava na doca
as lágrimas eram apenas chuva contra a janela.
desapareceu – num som vibrante
nós – tu e eu – vimos as ondas pequenas, uma após outra,
essa abundante população,
à tua procura. os choques eléctricos
no atlântico –

demasiado tarde para prosseguir. lembro-me
e que fazia ele neste lugar,
disseste tu. «ou talvez sejamos nós
mesquinhas precauções
não para o futuro – para nenhum futuro –
éramos dois entre muitos. e isto era uma novidade tão assombrosa
e, de certo modo, naquela noite
dormimos?
é assim que as coisas acontecem. o teu medo
a horrível e inacreditável sensação só idêntica à do prazer –
mas tu voltaste do banho
não tinha ainda percebido
mas tiveste, de repente, um extremo cuidado
agora queríamos ser abençoados.

anotei tudo, por isso sei
era provável que todos fossem felizes –
e era assim que devia ser.
do amor que fez mover o sol e as outras estrelas.
suponho que fixava o meu olhar no mar.
posto ali como um isco
de repente – «o que é aquilo? quem está aí»?
de onde veio? a mancha adicional do mistério
estava a tentar subir
tu não fazias ideia daquilo que eu dizia.
parecia abrir uma ligeira brecha.
esse era o eu que partilhavas com a terra bravia

eu estive lá e vi. e também te ajudei
dois, três anos, dias de desespero e lágrimas.
o teu corpo inteiro emprestado
porque dei-me conta (nem podia acreditar)
depois fui-me embora
a seguir em frente e atirei-me, como se estivesse a escapar-me,

tu escrevias postais, compenetrada
como se fosse uma religião nova ou muito antiga
no teu diário. e eu fiquei à espera, ainda na esperança
para mim, um pedido era uma ordem
para te lembrares deste sonho. e para pensares nele
e mais tarde, calmo e ponderado
frágil e húmido
era ele próprio – sabendo tudo o que ia seguir-se
e tu ficaste comigo,
foi isso que acabámos por escolher

a imagem da desolação. a fotografia de um casamento à chuva
a observar o meu coração enquanto este me desfazia em pedaços,
bom, ia morrer.
eu era já póstumo.
mais ninguém se lembra, mas eu lembro-me.

feridas de vento, espasmos da terra escura,
afundando-se cada vez mais
como uma sombra na parede de uma caverna.
ou saltar de repente
preparando as cenas que se seguiam
tudo o que tinha de meu, ouvindo um pranto
para qualquer coisa que já aconteceu.
nesse quarto carmesim dos nossos dias cardíacos.

mais tarde (não muito mais tarde),
a tua mágica operação de emergência
entre nós dois. de onde quer que viesse
personificando toda a tua memória
uma curiosidade
indagavas tudo isto com o teu olhar. sabias que ele estava ali
o que te tinha assustado
que só anunciava conclusões.

ali estás, em toda a tua inocência
lembro-me de uma trégua em fogo brando
tinhas de te ir embora e foste. e eu
e eu não consegui encontrar-te, nem mesmo ouvir-te
e a ocupação diária da minha vida
o tempo seguinte
os dois consumidos
que eu nunca soube como aceitar

o teu rosto queria salvar-me
veio cravar-se na minha testa, enquanto pedia ajuda
como Cristo. querias estar
com o teu irmão. mas agora precisavas de uma praia
agora eu queria mostrar-te uma dessas praias
a outra face, a autêntica, olhando para cima
como se estivesse ali o sonho da pessoa que tinhas sonhado ser
naquele momento o sonhador em mim
pela noite fora
bateu àquela porta como se o meu próprio coração
no teu corpo e caí com ele
foi coisa em que nunca pensei
este coração era o teu talismã, a tua magia
de quem te apanhou e devorou
estrada de regresso a mim mesmo
escutando, no final desta escada
de que (não sabia)
no deserto
por vinte anos de esquecimento –
a lua nova, com toda a sua família de fases,
metade de ti mortificada, outra metade sorridente.
farei tudo o que me pedires. mas que queres tu?
que eu desapareça da face da terra?
no atlântico
o teu punho –
de olhos muito fechados
e caindo
no meio do silêncio
nu e cravado de flechas
cravado pelas tuas flechas. mas era
com os teus abraços à volta do meu pescoço
que posso dizer-te que não sabias
dentro das nossas camas separadas.

às vezes penso
de onde as mãos desapareceram
como garantia ou marca registada do próprio deus
que te fascinavam,
como o suor do orvalho
uma história da qual nada sabia,
que te abraçou

só tu e eu não sorrimos
tudo perdoado e em comum
na luz do teu olhar
é melhor deixá-la
é melhor imaginá-la
e fora da janela
na cicatriz de uma ferida. podia tocar…


2008
A partir de Cartas de Aniversário de Ted Hughes

1 comentário:

Anónimo disse...

amor é... beijar os olhos de quem sempre nos vê sozinhos