segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

novos poemas ainda sem título para o conjunto inacabado

uma confissão

pedes-me que te leia
à noite antes de adormecer
que te embale talvez
com uma voz de veludo
emprestada ao carinho
cujo rasto me foi fugindo e
depois para a desgraça da minha fraqueza
acompanhas-me à tua casa
de bicicleta rodeando as muralhas
cortando pelos jardins plantados à volta delas
colando-me pedaço a pedaço o meu coração
pelo nevoeiro com os teus olhos castanhos
as tuas palavras por vezes pouco percebidas
na velocidade das tuas pernas em descida
já para não falar dos teus sorrisos
e a vergonha com que fico
do meu corpo à tua frente
perdido neles como tantas outras vezes fiquei.

na verdade posso fazer um caminho
de volta onde sempre te encontro
e posso finalmente contar-to
com cinco anos de atraso
o primeiro dia que me confundiste
deslocando-me o coração para o estômago
como desde fevereiro mo tens movimentado
eu estava num dos degraus da tua escola
à espera de leões e de limpar uma piscina
e entre a escrita e um desenho
que por vezes me atrevo como já sabes
vi-me sem tabaco quando de um túnel
ao lado me apareceste vinda de uma espiral
de vidro toda de negro e roxo lenço na cabeça
e luvas desdedadas
santa dos pulmões naufragados
com o meu tabaco preferido
português suave amarelo
com o meu pouco à vontade
do costume no meu baixo
tom de timidez pedi-te um cigarro
e tu torcendo o nariz sem o torcer de facto
mas lenta de relutância
deste-mo e eu agradeci-te de volta
vendo-te rodar e reentrando no túnel
e nesse dia encontrei-te e não te deixei entrar
depois fui-te vendo uma vez ou outra
andando pela cidade acompanhada
pelo teu então namorado da altura
(não citarei o seu nome apenas te direi
que na minha primeira e única até hoje
viagem no hoffman Express
o achei um diabo encarnado até no modo
como fazia malabarismo com bolas de fogo
o que me salvou nessa noite
foi o meu anjo de empréstimo
que nunca mais vi)
tu tão pequena ao seu lado
e de certeza que não te lembras
nem tens razão para isso
quando se trata de um desconhecido
visto uma vez e a quem
com alguma misericórdia
lhe concedeste um pouco do veneno
que trazias nos bolsos
os nossos olhares cruzaram-se
nos poucos segundos que distanciam cinco metros
e mal entravas e me remexias
em menos segundos ainda
a mobília do meu corpo
porque também eu estava ocupado
e me ocupavam em retorno
outras vezes em que nos cruzávamos
o meu olho via-se perdido
e só os corpos passariam. fiquei também
algum tempo sem te descobrir
já que me encontrava constantemente
em coimbra e nos açores e em trabalho
até voltar a Évora onde menos fria
te foste aproximando do meu bando de macacos
e às nossas macacadas
e foste deixando-te ficar entre nós
(e eu nessa altura lutava
por morar com apenas uma pessoa
e por isso nunca entraste nessa altura)
o que para mim foi uma surpresa
o que faz de ti a primeira fazedora de surpresas
retrataste-me desconhecido que continuava a ser
perdido nos teus olhos emaranhado nas tuas pestanas
vendo-me trocado pelos teus dedos
manchados de tinta de unhas pretas
dai a uns meses sempre tímido
ia te dizendo bom dia tarde ou noite
até me aventurar numa tasca
a falar contigo a conhecer o princípio de ti
e descobrir que esperavas um príncipe
num cavalo atravessando a horta das laranjeiras
e eu meio a sério meio a brincar
apresentei-to em mim em atitudes
muito tímidas e parvas
lutando por um amor que andava frágil
e que não preciso de to contar
porque sabes o seu fim um ano e meio depois

tenho de ser sincero contigo
mas não te assustes
mesmo se tiveres razões para isso
eu tinha um coração partido
que foi sendo colado por ti
juntando as peças aos poucos e poucos
esse puzzle que espero que venhas
a conhecer e a habitar de livre vontade
e a primeira e segunda peça
colaste-mas em dias de aniversário
deixando-me fazer-te companhia
e a dar-te cigarros e uma rápida massagem
e a falar de projectos contigo a passar-me a mão
pela cara que fugia à minha
falta de fotogenia
sabendo mais tarde que a encontravas
de boca cheia de comida
com o meu de sempre ar de cachorro abandonado
duas peças sem tu saberes e comigo a maravilhar-me
e a querer ver-te mais e a brincar contigo mais
a querer ganhar tempo contigo e a dizer parvoíces
e a descobrir-te e a cheirar-te
e a tocar-te e a escrever-te
até que inteiramente colado
caia no meu erro dizendo que não
que não podia ser tentando fugir
mas querendo estar ao pé de ti
espreitando-te de longe
esperando-te que de manhã chegasses
ou me visitasses na casa do médico
ou na nova casa quando lá dormia
e numa fuga me acompanhaste
com a impressão que te seguia
e te seguiria nessa madrugada
para onde tu quisesses ir
sem conseguir tirar os olhos de ti
falando com quem aparecia
sem qualquer hipocrisia
embora mais interessado
na maneira como te sentavas à minha frente
como brincavas com o cabelo
como mexias as mãos
e sorrias e rias às palermices
que se iam dizendo com a tonteria
da cerveja até que te deitaste
comigo a querer deitar-me ao teu lado
e adormecer contigo

por isso crisântemo ler-te-ei
com voz de veludo
reparando em todos os teus mínimos movimentos
enquanto adormeces
dando-te um beijo às escondidas
guardando-te o sono e os sonhos.



Évora - Sete rios

sempre gostei de estações de comboios
e o que lá está
não falo por exemplo
da pressa de embarque dos passageiros
nem dos gestos de despedida
dos que ficam mudos
pelos motores em aquecimento
mas antes dos restos
das partidas e chegadas
os cães cor de fuligem adormecidos
à porta do chefe da estação
os bêbedos que nos batem
na janela e que depois através do vidro
nos mostram uma velha de sacos
dizendo na sua voz lenta e abafada
que a mulher quer casar connosco
enquanto ela nos sorri
envergonhada dizendo que não
o homem está é com os copos
o que é verdade e mentira
porque para lá do rubor e do riso
esconde o coração viúvo e abandonado
tão frágil já sobre aqueles troncos de oliveira
que uma vez foram pernas e assobiadas.

gosto das estações
do cheiro a óleo e do fumo e vou
apontando isto que me aconteceu
naquela que me parece a nossa
primeira separação temporária
porque eu parto e tu ficas
nervosa inquieta triste e
ouço as minhas últimas palavras ao telefone
estúpidas palavras digo agora
perante a novidade que me assusta.
é tudo tão novo que me amedronto
se eu ou tu nos afastamos.
se abro a boca sinto que estrago
mas é claro que não quero
que me mandes dar uma volta
que vá passear e te deixe em paz
não agora agora não agora
tens-me preso
e terei e dar-te-ei toda a calma que precisares e pedires.



casa do Alentejo

à entrada não reconheço nada
tudo é mourisco um princípio
que liga à minha djellaba
mas tenho de subir toda a escadaria
para reconhecer a minha casa.
poderia dizer a nossa
só que ainda não lá vivemos
não ainda embora os planos
já os tenhamos feito
mesmo se surgidos por acaso
sem qualquer vontade expressa
eles estão lá já fechados ao longo do corredor
na sua divisão de quartos.
estou portanto num
alentejo e tu noutro
o teu verdadeiro o meu de empréstimo
e tu desenhas o que chopin te diz
por mãos amigas enquanto eu
escrevo para fazer tempo
como um real alentejano
com vinho e azeitonas
numa sala cheia de azulejos e
pratos na parede com motivos
da nossa terra adoptiva.
escrevo e tu desenhas
e tu escreves e eu rabisco
para voltar de novo à escrita
porque penso assim
nesta distância toco-te
porque ao escrever estás sentada
aqui à minha frente
com os nossos pés a tocarem-se
como na tua ou na minha cama se tocam
e de caneta na mão deslizando
a tinta pelo papel passo a mão
pelo teu corpo que pouco gostas
mas eu não. do que a minha mão
viu na rara luz dos nossos quartos
só me falta o teu gosto
mais fundo de mulher
salgado como estas azeitonas
que levo à boca para enganar
a fome e húmido como este vinho
que me deu coragem e a desvergonha
por agora para te dizer
que a minha língua é curiosa
tanto ou mais que os meus olhos
ou as minhas mãos
quando se passeiam pelo teu corpo
de leoa que aos poucos e poucos
me tem consumido
as noites os sonos e os sonhos
o meu desejo apenas domado
quando o teu encosto encontra
o meu à noite se adormeces.
estás no alentejo e eu nesta casa
em lisboa. tenho um rio
e tu a chave da casa
onde agora gostaria de estar
dizendo ou fazendo
o que digo aqui escrito.



a dor é uma propriedade privada

e se eu estiver a mais
na tua vida já tão cheia
de todas as memórias que me tens
contado. e se eu estiver
a menos no teu coração já
tantas vezes magoado
por outros que ainda te habitam
ou então o rasto deles apanhado
quando o teu olhar cerca
o horizonte ou o infinito
de palavras que vais calando
porque só agora nos vamos
conhecendo passeando e dormindo
juntos num esforço mútuo
de entendimento dos corpos
e seus ritmos e suas histórias
e hábitos. esquece a minha idade
e os brancos na barba o meu coração
é tão novo tão demasiado
novo nas tuas mãos
e o ciúme tão velho
que me assusta
se numa distracção o percas
de vista de cheiro ou toque
é um medo estúpido este
o de pensar que nos enganam
que se calam e não nos dizem
tudo como as pequenas coisas
e os pequenos sentimentos dessas coisas
que nos dão mas só vemos
a sua sombra ou a sombra
que nós deixamos cair em pensamento
sobre essas pequenas coisas e dos seus sentimentos
e por fim a impressão
de que estou estragado
não do coração mas do tradutor
que se põe a ler os teus sinais
as tuas breves violências e raivas
quando as queríamos como propriedade
privada do meu corpo. isto
não é uma maneira de te dizer adeus
mas abrir-me mais e mais
para te conquistar completamente
mostrando toda a fraqueza
da minha sinceridade
ou a sinceridade da minha fraqueza
não é afastar-te é trazer-te mais de perto
até que metade do teu corpo seja eu
e metade do meu o teu.



quando foges e fico

fizeste várias promessas no calor
de uma noite em que te sentiste
completamente arrebatada
com o que estávamos a conhecer
de nós os dois. lembro-me
das tuas palavras muito perto
dos meus ouvidos enquanto
me estrangulavas o corpo:
quero acordar sempre contigo
do meu lado fumar o primeiro
cigarro contigo não me afastar
entre outras coisas. mas
na verdade não me falaste
inteiramente do teu amor vaivém
de como a minha mão encontra
sempre o teu lado vazio e o cheiro
do tabaco já no ar.

sei a certeza das tuas confissões
do coração quando me apertas
com as tuas mãos ciganas
ou quando me vês a fechar
o meu pensando que talvez
te tenhas enganado nos traços
do destino que preparamos
em conjunto. aí sim tu vens
melosa e apaixonada e dizes
eu fico eu estou
aqui e eu sei.



uma primeira viagem

nessa manhã podíamos ter dado
a volta ao mundo pelo nevoeiro e
as searas em geada do alentejo.
éramos ainda dois
desconhecidos, mas já pintávamos
os lábios um do outro
de batom vermelho, um
que trouxeste de nossa casa ou já na mala
o guardaras. seguimos para evoramonte
onde a tua vida passara com outra
história, um outro homem. por guia
perseguiu-nos e perseguimos um gato
habituado às carícias de turistas.
circulámos pelo estreito caminho
das muralhas trocando poucas palavras
e quase sempre murmuradas
o que aumentava o encanto
de uma vila quase morta ou apenas adormecida.
estranhámos o cemitério pequeno e seco
com flores artificiais e sem relva
tal como o resto da vila, porque a fome
e a noite não dormida pedia-nos um pouco
de descanso e a madrugada
foi dando lugar à manhã, o frio
ao sol que amolece a vigília
num banco da principal praça
onde se vendiam chapéus. vi-te
a experimentá-los, eu próprio
tentei um ou outro quando só
me apetecia experimentar o teu
amor. mais tarde, já quase
mortos de sono, metemo-nos
de volta em viagem
com desejos de partir e não voltar
mas perdermo-nos ou deixarmo-nos
nessa letargia lenta dos olhos
sobre a paisagem. cortámos
para a direita, a primeira curva
depois de evoramonte. apertada
estrada entre eucaliptais.
poderia ser a ideia de austrália
se em poucas horas o passo do mundo
fosse curto. embalámo-nos ao som
do vento dos eucaliptos na tua bagageira,
embora pensasses que eu nunca
concordasse com tamanha proposta
de, contigo, viver. a minha
prontidão surpreendeu-te
tal como os teus três olhos
a mim, enquanto adormecia
feliz.



lamechas canções de engate para uma cigana

i

a minha cabeça já não me pesa
levanto-a bem alto de sobre o peito
deixo de olhar atentamente para os meus pés
tenho-te como guia ouço os teus passos


ii

vejo-te sempre um pouco
mais à frente embora estejamos
tantas vezes lado a lado
e gosto de te ver assim
nessa dança de ancas só tua


iii

de manhã tenho só a cor
da minha pele e a memória da tua
com elas preparo o meu pequeno-
almoço de galão directo de desejo


iv

de todas as tuas colagens
a que prefiro
é a do meu coração


v

já olho de frente tudo agora
mas a minha sina
traça-se com as tuas
unhas nas minhas costas


vi

o teu amor vadia
pelo meu corpo vagabundo
mas o labirinto onde vagueio
e viajo é o teu coração


vii

gosto de andar na tua carrinha
sem saber para onde
e perceber o fim da viagem
no encontro dos nossos pés descalços na cama


viii

hansel e gretel usaram pedras
para encontrarem o caminho de casa
a mim bastam-me dois espelhos
para ler as minhas costas


ix

nos teus braços descubro
a minha casa
no teu corpo perco-me e
nos teus olhos encontro-me



outra apresentação

eu tenho um problema
sou ligeiramente normal
vendo o mundo ligeiramente
nos eixos, nem bem nem mal
fora uma certa miopia, alguma
gaguez e choros ocasionais.
nunca trabalhei e nunca
proferi o nome de Deus em vão
também Ele não
proferiu o meu nas suas horas
de maior solidão e tristeza.
encanto-me com certos cantos
onde certas flores crescem
e espanto-me com pequenas
coisas, tão pequenas
que ainda não lhes deram nome.
sei o abecedário e escrever e ler
listas de compras e telefónicas
e espero que compreendam quando
digo que me chateia um pouco
que algumas pessoas por quem passei
os olhos não me liguem.
não me levem a mal já agora
mas não acho assim
tão incorrecto roubar
se se tem fome ou sede, sabem
já nascemos ladrões do seio alheio.

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