domingo, 21 de dezembro de 2008

kerouac





AUTOR: Jack Kerouac
TÍTULO: Os Subterrâneos
EDITORA: Relógio d’Água


Exceptuando o artigo de promoção de uma novíssima revista no campo editorial português, tenho sempre referido – não digo aconselhado porque, com a minha idade, cai-me mal essa palavra – autores que por várias razões já se tornaram “clássicos” da literatura, cobrindo uma larga dimensão histórica: passagem da Idade Média para o Renascimento, do Classicismo para o Romantismo e esse fim do século xix de múltiplas expressões indicando as explorações futuras do século xx. Por outro lado, nestas exposições que, por razões óbvias, tratam das minhas inevitáveis e pessoais posições no seio da Literatura enquanto leitor amante (não poderá haver outra tomada de posição senão a de apaixonada e subjectiva – nem a ciência, pilar da objectividade, foge a estas tomadas de posição); tenho igualmente circulado entre o(s) centro(s) e a(s) margem(ns) do cânone literário – sinceramente, como não tenho aqui à mão essa outra bíblia da frente mais conservadora dos estudos literários, O Cânone Ocidental de Harold Bloom, não vos poderei afirmar com a devida segurança e propriedade se Lautréamont já faz parte do cânone ou percorre ainda as margens da Ítaca literatura. Chegados aqui, os atentos leitores destes textos, bem como o seu escrevente, perguntar-se-ão: para onde vai este preâmbulo? Qual o seu propósito?
Escrevo-vos hoje de um autor de todo canónico, embora leitor e conhecedor dos clássicos, e habitante das margens. Os seus livros, aliás, tratam de uma certa parte desses anónimos marginais onde também nós, de um determinado ponto de vista, fazemos morada e somente somos chamados a visitar o centro em momentos pontuais: os políticos, por exemplo. Contudo, se semelhança há entre todos nós e esses personagens marginais deste autor é no que respeita à Vida, ao gosto de viver, à paixão a ela dedicada.
Jack Kerouac (1922-1968) é considerado o pai da geração Beatnick – e como não há pai sem pai, embora haja filhos sem filhos, podemos ver em Pesadelo em Ar Condicionado de Henry Miller a sua ascendência – corrente literária norte-americana das décadas de 1940-1960, essa geração que enquanto crianças conheceram a grande depressão. Uma geração de vagabundos, de viajantes incansáveis procurando conhecer a América profunda, os seus verdadeiros rostos, a sua vida mais íntima e, por isso, recôndita. Mas igualmente descobridores dos mundos interiores despertados pelo álcool e pelas drogas e despertadores de outras consciências e realidades (um pouco à semelhança de outras correntes literárias ou autores do século xviii e xix).
Fazendo par com a ideia de Viagem e Vida, encontramos a Música e a Poesia que, num certo sentido, todas elas se poderão ler como sinónimas, cada uma destas palavras é ela mesma e as outras, dizer uma é dizer o sentido mais profundo do homem e do mundo – tal como Liberdade, palavra igualmente cara aos poetas e escritores beat. Os textos de Kerouac apresentam sempre estes quatro conceitos-chave imbricados. Do que ele fala é da Vida, mas vida como poesia viva e a ser vivida, Poesia sujeita aos ritmos da musicado bebop e outros jazz, Música que embrenhados nela nos leva em viagem ao longo dos sentimentos, isto é, ao próprio centro da Vida, da sua própria, a do autor. Os seus livros são reais pedaços da sua vida passados pelo crivo da ficção, estabelecendo assim no reino da mentira, do como se, blocos de verdade.
Todos esses elementos, que acima referi, lêem-se em Os Subterrâneos, livro cometa sobre uma paixão de Kerouac em São Francisco, uma mulher meio índia meio negra, e o seu desenlace, tecido numa linguagem entre o poético e a do dia-a-dia, num ritmo alucinante – escrito em três noites movido a comprimidos de benzedrina – cruzado com momentos de boémia, loucura e alguma filosofia. Somos submersos por uma corrente, ora doce ora violenta, de emoções, ciúmes. Daí talvez o título do livro, para além de ser epíteto, no romance, do célebre grupo beat – Allen Ginsberg, William S. Burroughs, Jack Kerouac, Gregory Corso, entre outros – quero dizer, somos conduzidos aos subterrâneos do coração e da memória do autor, tal como numa gruta se encontram cristais de lapidação bela e frágil.
Respondi ao pedido aventureiro do autor e do tradutor Paulo Faria, li o livro em três noites e fui para casa e escrevi para vocês.

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