domingo, 21 de dezembro de 2008

fausto de goethe







AUTOR: Johann Wolfgang Goethe
TÍTULO: Fausto
EDITORA: Relógio d’Água


Fiquei durante algum tempo, enquanto lia o livro que ora apresento, a pensar se realmente esta obra necessita de apresentação. Chego à provisória conclusão que todos, sem excepção, os livros – digo – não necessitam mas, ao invés, precisam, com cada vez mais urgência, ser apresentados, dados a conhecer. Os livros precisam de ser redivivos.
Verdade é que muitas coisas há que mais belas ficam cobertas de pó, musgo, habitadas por esses solitários e arquitecturais animais, as aranhas. Essas são as coisas da natureza por excelência. Quanto mais mortas mais vivas se tornam, mais vida dão. Quanto às de humana criação, em parte, é igualmente visível essa transformação, essa, como que, renascença, envolvidas numa aura quase benjaminiana – essa que a suposta reprodutibilidade técnica exaura – que o nosso olhar revitaliza num pequeno desvio de perspectiva – aí estão para comprovar os edifícios abandonados embora visitados, ou os apanhados pela “objectiva” do fotógrafo. Que fazer com os livros nas estantes dos cemitérios de papel?
Por trás deste enorme livro que vos trago nesta página crítica – crítica por variadas razões e decerto cada vez mais afastada do seu pedido papel, sou assim uma espécie de siamês, parte Iago parte Othelo, um invejoso traidor e um amante ciumento, traio o meu papel de crítico por amor às palavras escritas e por uma inveja ciumenta relativamente aos escritores; por isso este tom tomado de empréstimo, pois tento dar voz ao modo como eles, os escritores e os seus livros, me afectam – muitas histórias há. Umas unidas à grande história universal do homem, outras à particular história do autor, outras ainda a mim próprio. Claro está que falo melhor e com mais probidade e propriedade das minhas. Cito uma, curta: estava sentado no jardim público de Évora bebendo café quando passa por mim um professor de filosofia meu conhecido. Após cumprimentos inquire-me sobre a minha leitura. Espanta-se – aliás, todos, sem excepção, que me viram com o Fausto se espantaram – pois que por mais que seja um clássico, ele, professor de filosofia, que deveria conhecer os clássicos, não o lera e deu-me os parabéns por estar a fazê-lo. Depois trocámos algumas palavras sobre o significado de Fausto, que já lá vamos. Antes gostaria de me, e a vós, perguntar: afinal o que significa ser um “clássico”? (Aguardo respostas).
Quem já não ouviu falar de Fausto? Quantas histórias não foram já escritas influenciadas ou a partir de Fausto? Quantos filmes, peças de teatro, óperas, músicas, peças de dança não se realizaram já? Quem já não ouviu, leu ou disse, mais ou menos: que faustoso isto ou aquilo é! O próprio Goethe, antes de escrever esta tragédia em duas partes (1775-1808, 1ª parte com várias versões, 1825-1831, 2ª parte), já tinha ouvido falar de e lido sobre Dr. Fausto. A personagem terá mesmo existido entre 1480 e 1540, tornou-se lenda, depois mito e ganhou corpo literário ainda no final do século XVI início do século XVII, especialmente com o dramaturgo inglês Christopher Marlowe, contemporâneo de William Shakespeare. Assim sendo, esta peça de teatro irrepresentável na sua totalidade como Goethe a escreveu, um “drama de gabinete”, um “drama para leitura” (Lesedrama), nas palavras do excelente tradutor João Barrento, não é de todo novo mas, assim como é, oculta todas as outras versões de Fausto, tornando-se esta como que o Ur-Faust, o primeiro Fausto de onde todos os outros nascem.
A história é demais conhecida – daí o meu balancear entre apresentar ou não apresentar, qual Hamlet – e por essa razão resumo-a iluminado pela sombra do ciúme, da inveja e da traição. Um sábio, filósofo e alquimista, julga que todo o seu conhecimento é nenhum e vê-se, sem saber, desenrolando um papel quase bíblico, uma espécie de Job, uma vez que Deus e o Diabo, chamado aqui Mefistófeles, firmaram uma aposta sobre a alma de Fausto. Este assina a sangue um contracto com o anjo caído, recupera a sua juventude e parte com o seu novo companheiro pelo mundo. Vê a Beleza na imagem dada de um espelho, transfere-a para o corpo de uma jovem rapariga que se cruza no caminho e no olhar, Margarida. Apaixonam-se, dão-se um ao outro e num infeliz acaso Fausto mata o irmão da sua amada. O amor está perdido nas mãos da loucura de Margarida, é encarcerada e quando Mefistófeles planeia com Fausto a fuga da rapariga, esta recusa e oferece a sua alma, redimindo-se dos seus pecados, a Deus, chamando pelo seu amor que não a acompanha, nem na remissão nem na morte. Fausto de novo parte com Mefistófeles, isto é, segue o errado caminho, metendo-se em várias aventuras, chegando mesmo a casar-se com a renascida Helena, perdição de Tróia, e mais não digo, senão estrago a surpresa.
Por fim, necessário é deixar aqui um aviso. Fausto é ele próprio faustoso, exuberante. Escrito em várias formas de poesia rimada, repleto de “uma classicidade por vezes esmagadora e hierática (mais na Segunda Parte), com cargas simbólicas e efeitos alegóricos fora do alcance do leitor médio de hoje” (diz-nos o tradutor na introdução), o Fausto não é de fácil leitura. E as interpretações que se fazem deste longo poema trágico são muitas, políticas, sociais, místicas, religiosas. Esta é uma das qualidades dos clássicos, a sua leitura interpretativa, tal como dissemos um ao outro, eu e o professor de filosofia que se espantou. E continuará a ser clássico se hoje, lendo-o hoje, acrescentarmos a nossa própria leitura interpretativa. Um clássico dialoga com os séculos ao longo dos séculos e continuará a ser belo se nós formos o pó que o cobre, o musgo que lhe cresce, a solitária aranha que novos fios tece sobre as suas linhas. Eu, eu gostava de ser uma aranha.

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