“É bom acordar a meio das horas
e não estar ali só por encontro”
Joaquim Manuel Magalhães
“Oh, que composição tão ordenada,
sem o mais pequeno interesse.”
Helder Moura Pereira
partida de lisboa
a partir de Che cos’é la poesia de Jacques Derrida
não tenho uma cabeça que me pertença
nem tão pouco uma mão
que não fira e roube
vês-me
aqui estou
entre as tuas mãos
não me arrumes
decora-me
não mais que isso
sem qualquer cor e espaço
para esconder e ocupar
leva-me no teu coração
sem memória sem cultura sem saberes sequer
o que é
sou um ouriço
ou um poema
chegada a évora
em tempos
quando chegou pela primeira vez ao alentejo
conheceu uma rapariga
depois de começar a viver com ela
foi-se apercebendo que ela era duas
uma que lhe dizia que o amava
com tudo o que o amor podia dar
a outra alimentando um ódio diário atirado à cara
a ele
(no silêncio quando fingia dormir)
ou a ela
tentou resolver a situação várias vezes por iniciativa própria
mas a morte nunca a aceitou
preocupada que estava com outras coisas
depois procurou viver com outro também já separado
mas este a vida cedeu-o à morte no mondego
enfim noutro além tejo
com pedras nos bolsos
quis voltar mas o primeiro já estava para lá de marrakesh
em relação a ela
sempre no alentejo
hoje pensa nisto sem amargura
ou talvez com uma pitada senão não escrevia
este poema para se esquecer de-
(fini)ti(vamente)
e talvez haja uma moral aqui escondida
se odeias
não atires pedras
guarda-as nos bolsos junto às tuas mãos
ou leva-as à boca como Molloy
varandas, terraços, janelas
o verão começa a vestir a sua pele de setembro
cai o dia nos claustros do espírito santo
a fonte está seca
coço a barba
de vez em quando uma andorinha uma gralha uma
aranha lançando um fino fio
procura de novas armadilhas
cuspo aqui cuspo ali e de novo uma renda gigante
meio adormecido ouço saio sigo
na sociedade harmonia eborense bebo
uma duas cervejas geladas
fico-me a ver a mestria dos velhos jogadores de xadrez
algumas gotas de chuva caiem no terraço
recomeça o rebuliço
há um fogo nos campos
ao redor ninguém acorre
escrevo e rescrevo em vão
esperando que chegues
talvez ainda hoje
até lá continuo ocupando-me com as coisas da casa
(o desconsolo é estar nesta cama sozinho)
casa dos bonecos
contaram-me como o outono nascia em casa
como na pobreza um búfalo consegue ser o nosso único amor
mas também ouvi risos e vi dragões
bichos bruxas caracóis
e um pano preto
acreditamos em tudo
mesmo com um coração partido
largo chão das covas
vi-te sozinha pela primeira vez
sentado no degrau do passeio
parecias pequena quase uma menina
não dizias nada e eu como sempre pouco mais
no reflexo dos teus olhos havia tudo
falámos do que nenhum sabia um do outro
o que fizemos por onde andámos
deixámos correr as horas e os copos
esses não os largávamos
trocámos de amigos que afinal eram comuns
vínhamos os dois de relações arruinadas
isso via-se mas de qualquer maneira
a verdade é que o tempo
não passa de um curandeiro parlapatão
por isso tentei animar-te com a minha melhor voz de trazer por casa
verdes são os campos
da cor do limão
verdes são os meus olhos
e os teus não
fomos para a nossa casa saindo do comendinha
e para lá das muralhas
no caminho ainda cheguei a ouvir-te muito baixinho
em cada homem
habita um poeta frustrado
avenida dos salesianos 1
nem todas as memórias são frias em janeiro
a minha mão costuma passear-se pelas tuas costas
encurva-se estala sob o meu aperto
escapa-se o frio por baixo dos lençóis
trocamos de ar
caras frente a frente
sai de mansinho a humidade
num bocejo quente junto ao sexo
os lábios fugindo da mordidela
o espelho embaciado de banhos prolongados
olho-me
sempre tive esta barba
a utilidade de um esconderijo do que não sei
o adiamento da idade do desconhecido
a morte vai-se alojando nos ossos
no útero nenhum inquilino
nenhum sonho suspenso pela noite em vista
avenida dos salesianos 2
nunca conseguimos dormir sossegados
os gatos sempre na cama
olhando-nos acusadoramente
passaram o dia inteiro ao sol
e mal uma das nossas pernas vai de encontro à do outro
resmungam
desculpa lá meu
não te queria incomodar
também tenho direito à preguiça
fechar os olhos
fazer as contas à vida
deixar os músculos relaxarem
prometermos não ter medo
amanhã tomar nota
trazer o coração na boca
talvez para escrever um poema
temp(l)o
uma meia-lua
os teus dedos coçando
um inquilino na tua barriga
(prometes a ti)
lua cheia
os teus olhos quando sorris
enquanto a chuva cai na tua mão
(o risco esborratado)
lua nova
dentro dos teus olhos
uma figura repleta de um negro profundo
(o calendário diz boa pescaria)
a outra meia-lua
os teus dedos
com o sabugo à mostra
de cortares as unhas rentes
(maldito corta unhas)
alçude
por vezes
quando acendo um cigarro depois de uma discussão
quando já mal me ouves de tanta estúpida troca de palavras
espero que adormeças
então aí digo-te boa-noite à tua noite
bons sonhos
para te desarmar
o que já não digo
pela também estúpida questão de orgulho que partilhamos
e que afinal é o que realmente dói
tens razão
foram palavras a mais
tiraram-te o sono
para não falar da revolução das hormonas
o ranger dos dentes
fico a olhar-te feito criança
o branco em toda a órbita
suspiro trancado no peito
o cigarro apaga-se quase nos dedos
quando volto para a cama
sei que soltas quase tranquila quase
uma lágrima que te desenha a cara
antes de se te fecharem os olhos
muitas vezes é para amanhã
o que se podia dizer hoje
segunda guerra do golfo no bairro das pites
afasta-te da parede e chega-te aqui
a mim
não sei para onde costumas ir todas as noites
nem sei como podes sair nesses preparos
não tens frio
não queres sequer um agasalho
faz sempre tanto frio e entra tanto pelos tapumes
os gatos são cada vez mais numerosos
problemas de espaço de estado
de cuidado
a casa cada vez mais suja
cheia de restos folhas moscas louça
com comida seca roupa pelo chão
há sempre tanto para fazer
volta
volta-te
lá fora ouvem-se tantos disparos
as estrelas cadentes aqui
são as estrelas atingidas nos céus
de tantas cidades cercadas
os anjos
esses já morreram há muito
estudos e exames
ainda nem o sol e já expulsavas o seco dos olhos
com suspiros fazias a cama gemer
em simpatia eu tentava equilibrar a tua saída com uma diagonal
macaqueei-me de um lado para o outro
representava um ritual de acasalamento
desorientava-te o estudo das mentalidades medievais
Santo Agostinho olha para o meu corpo piloso
ainda não lavei os dentes
quero guardar ainda a noite na boca e nos sovacos
… deixa lá vou acabar de vez com o juízo de Deus
e depois vou ter contigo
(que coisas ridículas se fazem
quando se tenta encher o vazio que uma gata deixou
com a sua partida)
de évora a coimbra e volta
a chuva cai a alguns quilómetros de ti
daqui
desconheço a humidade
do outro lado da tua janela cerrada
por um desarranjo de fios e plástico-tapa-sol
há
um martelar de gotas
um ping ping
frio pelas cortinas
e um chão duro
com uma abóbada de bichos-da-madeira
não é fruto que se cheire
flor que se coma
nem para asceta serviria
esta distância esta viagem
a conta-gotas
com os olhos a saltitar
entre paisagem e pálpebra
e engolir o gosto do sono na boca
já falta pouco
vale e montanhas já passámos
pelo lixo e pobreza
rios pelo meio
e depois aquela planície
com árvores descarnadas
o topo desabitado para as cegonhas
que virão de África
e depois as vinhas
os mé-més
os mú-mús
e eu caracol a sorrir com uma gerbéria
pronto para viajar
mas agora contigo
nem que seja os dois deitados na cama
a ver a noite a entrar pela janela
insónia 1
pois o pior para mim
é a letra erre
é por isso que nunca percebi se sou merdoso
ou um medroso apenas
trabalhos e tranças do casão
ela desperta mal abrindo os olhos
destapando apenas aquela perna varizada
não há conselhos para a pouca vontade
de mais um dia de trabalho
mas levanta-se
com o peso dos lençóis sobre as pálpebras cerradas
oh it’s just a perfect day
e era
tomando banho
juntos
com a pele distanciada pelo gel
ninguém diria que depois do almoço
não nos veríamos por dois dias
eu cá fiquei
comendo uma trança de noz pecã
já bicada por formigas e quase ficando seca pela espera
na caixa de cartão com o fundo engordurado em cima dos livros
chegaste depois de três viagens longas
querias cigarros
e eu
abri a janela
deixando entrar as cigarras
insónia 2
talvez nunca venhamos a saber
as coisas como elas são
como porquê eu e tu porque eu e tu
por dizermos tu e eu
e esta é a nossa casa
que alugámos
e não outra
e por vezes
quanto nos custa largá-la quando daqui saímos
para visitas contas cartas
o lixo para a reciclagem junto à parede na cozinha
não ponhamos as queixas sobre a mesa
junto à máquina de café da manhã
o candeeiro da tua irmã
o cesto do pão com um côco
saímos
entramos
e nunca chegámos a partir
talvez nunca venhamos
promessas
pediste-me que te explicasse o que era um poema
e eu assim fiz
tentei dar-to a conhecer
como me parece que é
pela parte que me toca
ritmos respirações aspirações inspirações expirações expiações
como ele nos pode apanhar quando menos esperamos
um certo toque um choque
um olhar um cheiro
sabor até que passa raspa corta
fiz o melhor que pude
articulei-me desarticulei-me resfoleguei
braços para um lado pernas para outro
mimei fingi trouxe ao de cima toda a minha sinceridade
honestidade carne suor ossos
creio que ficaste a saber
mesmo se ainda com dúvidas
depois
como se não bastasse
pediste-me que te fizesse um
ou que te mostrasse
por mim
tudo bem
só tens de esperar nove meses
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