domingo, 30 de novembro de 2008

meditação de fim de tarde

Then she drew the curtains down
And said, “When will you ever learn
That what happens there beyond the glass
Is simply none of your concern?
(...)

Nick Cave


mentiras que nos contam


ela chora de noite
muitas vezes
sem que o meu abraço a console
ninguém disse que a infância
restava apenas nas fotografias



carta aberta aos poetas da actualidade, dos quais alguns eu até gosto


se a cidade vos causa tanta solidão
venham para o campo e conversemos



resposta atrasada a Walt Whitman


os teus poemas chegaram finalmente
sim
sãos e salvos
mas
infelizmente
o sentido da tua explicação
sobre este enigma do Novo Mundo
E que definiria a América
e a sua atlética Democracia
deve ter-se perdido
algures no oceano
talvez
ou junto do teu coração
quando te enterraram



ode a um gato morto


nasceu duro e frio
de chapéu na cabeça e
olhos verdes
(embora nunca os tenhamos visto)
abria a goela para o que lhe convinha
e o que lhe era de direito
mas entre dois lados
digamos
entre dois territórios
bem na fronteira
abriu demais e rasgou a garganta
deixámos correr a natureza
contudo ele resistia
a mãe afastou-se
enquanto nós o víamos a definhar
de madrugada morreu
na passagem pouco nítida
do inverno para a primavera
a mãe comeu-o entre biscoitos
friskies e golinhos de água
a avó chorou no meu colo
quando ninguém estava a ver
e eu também



a uma rapariga apedrejada no Iraque


tantas vezes te falaram do romeu e julieta
que acabaste por acreditar
que contigo seria diferente



miopia


às vezes penso que poderia ter sido um grande poeta
desses que nos fazem tremer e escrever poemas
que fizessem o mundo parar
mas o mundo distrai-me de tal maneira com os seus pormenores
que a maior parte das vezes
fico a vê-lo passar



resposta a meu mestre Hagakure


todos os dias faço o que Hagakure nos disse
se morreres em pensamento todas as manhãs
já não terás medo de morrer
não o nego
mas também não consigo evitar pensar duas coisas

um
se nascer em corpo todas as noites
já não terei medo
de viver o dia seguinte

dois
e se a morte vier sem ter pensado as vezes suficientes
como poderei viver
com este pensamento



respira


se estás a perder o teu nervo porque é que estás a perder o teu nervo
descansa senta-te e enrola mais um cigarro
e acima de tudo não tenhas medo de acender o teu fósforo
não é a tua vida que se vai esfumar
é apenas o tempo para respirar
enfim e finalmente



o monstro que podíamos ser


Pernas de mergulhar
Boca de ver
Olhos de tocar
Pés de morder
Mãos de cheirar
Sexo de morrer
Braços de pensar
Nariz de comer
Tronco de beijar
o monstro que podíamos ser



notas sobre um jardim público


por entre as obras e escavações
passeiam-se alheios a tudo
os pavões com as suas grinaldas e os seus vários olhos
os jardineiros varrem e sopram com a típica displicência do alentejo
quase ninguém a esta hora da manhã
para além do canto e dos seus pássaros
gralhas pardais rouxinóis ruínas falsas
um coreto abandonado
peixes folhas e insectos de cartão
pendurados equilibrando-se uns aos outros nos ramos das árvores

há poucos dias desenterraram um corpo
de uma criança e de uma mulher do séc. xiv
estão cá no jardim público ainda antes de D. Manuel
ter mandado construir o seu palácio
não se trasladarão para qualquer museu
ou laboratório de uma universidade
o que se descobre tapa-se oculta-se
dos corpos passados fica apenas
um rasto de curiosidade
nada mais do que uma marca

podemos sentar-nos nos bancos
pesando os prós e os contras
do que nos convém ao momento presente
fazer desses bancos um mundo uma ficção solitária
e ver o resto passar
o pó penas plumas
formigas aranhas minúsculas
encontrar gatos que simpatizem connosco
porque querem comida e festas
fazemos do silêncio o nosso lar
planeamos aventuras derrotamos os monstros
por trás das sombras
assustamos com certa impertinência os dias felizes
dos casais entre os arbustos
trocamos palavras
moldamos a língua com o ócio
de imigrantes turistas passeantes reformados
com os seus chapéus remédios mapas
estabelecem-se pactos de concórdia
com alguma desconfiança
e sabemos do tempo
pelo guarda fechando o portão



processo de apresentação


de mim poderei dizer
para que me concebam
que conheci e travei amizade
com umas quantas pessoas e
quando as disser
faltarão decerto outras
que me esqueci
e que me esqueceram



poema do ciúme


posso não te ter dado um beijo à porta de uma fábrica
mas as cidades continuam porcas
o que me preocupa por vezes
são as poucas palavras trocadas quando chegas a casa
derreada pelo trabalho que nem sequer te interessa
e desculpas o calor pelo desinteresse
a esse buraco na cama antes preenchido
muitas vezes vi essa história passar-me pelos olhos
quando pouco percebia do amor
senão pelo exemplo dos meus pais
e dizes que tudo é invenção
que não me faça de vítima
mas também disseste que fosse lá ter
enquanto conversavas com outro
e fiquei à espera
no sítio prometido
(cinco minutos
que me pareceram uma despedida)



meditação de fim de tarde


quando uma certa inocência se perde
se alguma vez a tivemos
ou debaixo de tanta roupagem a não vemos
rapidamente percebemos que afinal
sempre tudo foi tarde demais
aquele poema que escrevemos
e a sombra já te fazia a vez de óculos escuros à frente das lágrimas
aqueloutro que descobrimos
que nos faz falhar e não nos deixa falhar melhor
as palavras do médico por trás da escrivaninha
as desculpas depois do disparate
o prémio depois de morto e a morte depois do amor
o sinal ou o travão depois do choque
(e a listagem faria o livro do mundo)
e a certeza que
quando nascemos
e a inocência nada tem a haver com o caso
já temos idade suficiente para morrer



poema do cornudo


partiram-me uma vez o coração
e deliberadamente desci a escadaria da pouca saúde
para perceber no fim
que o que separa um remédio de um veneno
é somente a dosagem
agora
se mo partirem de novo
depois de colado
peço apenas que o façam rápido
e me deixem em paz
então
poderei assistir a uma última sessão
e chorar pela primeira vez
senão houver bilhetes
eu cá me arranjo
e me entendo com a morte



espera


o meu dia-a-dia é esperar-te
a minha noite é a tua vinda
levantar-me quando já não estás
realmente despertar quando chegas

tive pena que não viesses
que a conversa tenha servido para um
esquecendo os dois
dei-te cinco cigarros de avanço
e já não tenho trocos para comprar mais

espera

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