domingo, 30 de novembro de 2008

botija de água quente

"This is not my time
I would only give you second thoughts"

Leonard Cohen



"Existence well what does it matter?
I exist on the best terms I can.
The past is now part of my future,
The present is well out of hand."
(…)

Ian Curtis


entre lisboa madrid e casablanca

não será nunca de despedida
um beijo à noite
virando-nos depois
metendo as mãos nos bolsos
ou introduzindo as chaves na fechadura de um carro
são apenas horas lentíssimas escorrendo dos olhos
o que nos separa
são isso as fronteiras
horas e olhos seguidos em cadências
por isso se um dia
se uma noite te der um beijo
e os teus olhos se fecharem
começarei a andar de costas voltadas
no inverno da terra
atrasando
(a hora da reza que começa às quatro
e todo o mercado se simboliza
porque deus está em todo o lado
até no lixo que circunda a cidade
enquanto isso vou bebendo chá de menta
mentindo com um sorriso um encontro que tarda).




delicados demasiado

podia passar assim os meus dias
suspeitando da alegria e da tristeza
de todos evitando a minha
não é uma fuga
antes uma distracção
sentado num terraço
(e não há ninguém aqui)
o alentejo em queda livre
e telhados com cata-ventos
de galos e cavalos silenciosos
um café e uma água
podem tornar-se companheiros pungentes
com a sua obscuridade e clareza
penetrar um mistério parece-me ser uma qualidade
dos líquidos e este tempo seco prega sustos
a corações delicados
demasiado delicados para distracções



vinte e cinco

hoje quis envelhecer
afoguei as minhas mãos no lavatório
e nem um mio se fez ouvir
deixei-as a nadar e a trocar a sua vida
de queimaduras cortes vidros cravados
pelas rugas mais cândidas que uma mão
de cinco dedos e o múltiplo da sua idade
podiam ter
finalmente percebi
essa imagem do tempo a escorrer como água
é tão fácil enganar a cabeça
quase tão fácil como premir um botão
e esperar que um ião que compõe a água
faça um buraco no tempo



botija de água quente

nenhum caminho é o certo
a não ser o teu
nenhum sono é mais necessário
do que aquele com o calor do teu gato ou cão
nenhuma pessoa queres menos que te acompanhe
do que aquela a quem preparas o teu corpo
cadeira sem roupa do dia
(podes ser o cão ou gato mas na tua ausência
sempre há a botija de água quente)



enquanto tratavas dos dentes

está aqui tudo aquilo que desconheço
as pessoas
imperceptíveis partes velhas da cidade
as periferias das histórias
cravam cigarros a qualquer um que tenha
um ar ingénuo ou inocente
resmunga-se bebe-se come-se
com os poucos dentes que ainda se tem
e depois como cães alia-se o ócio
à digestão das memórias
varinas varandas frágeis com fetos
ervas daninhas que já se alimentam de sal
ferrugem gases concentrados que mudam a cor
das peles rugas falhas
e parecem abandonadas as casas
com buracos de azulejos
cimento à mostra descarnadas
as caras de olhos apagados
mesmo com o sol a entrar por todo o lado
fazendo triângulos à entrada dos cafés
estão na sombra a rebobinar o filme
a tentar apanhar o ponto
que lhes tirou o sentido



D. Maria Manuela, seu marido e seus cães

sempre a vi soterrada
em malhas de lã à volta do pescoço
óculos de lentes pesadas
com olhos de horizontes distorcidos
uma vez experimentei-os aqueles escuros numa praia
e tudo me pareceu metido num daqueles filmes
mudos a sépia com as pessoas
à velocidade da manivela
só mais tarde soube que (ela)
estava com a sombra
cada vez mais próxima agora

tece tapetes de arraiolos
a um dedo de distância dos olhos
as mãos trabalham com a destreza
de quem pensa na vida que levou
faz viagens teve cinco filhos tem um marido
cheio de silêncios e a companhia
de um cão velho e uma cadela que substituiu
um outro rafeiro que morreu
baba-se com os netos mas chora muito
com os ataques epilépticos da cadela
por pouco era feliz



tempestade

(digo-te sempre) até logo (não há que ter medo)
engolem-se as palavras
pondo-se a mão na boca
escondendo-as num bocejo
guardam-se para depois

eu volto cheio com a ilha de barulhos sons e ares doces
os teus olhos vermelhos da névoa
das poucas horas de sono
prendem-se ao calendário
conta-se tudo distraímo-nos
tentamos não lembrar-nos de coisas
para tudo passar mais depressa por exemplo
tento aprender a escrever para escrever-te
um poema como hobby
à parte isso represento
(mas tu sabes quando não estou)
e agora agora nada basta-me abrir a janela
esticar ligeiramente a mão e...



encontro deste lado do cinzeiro no gandaia

no meio de muitas pessoas
conhecidas e desconhecidas
muito do nosso amor
faz-se de pequenas coisas
cerveja no copo cigarro na mão
e na boca de lábios humedecidos

sem darmos por isso
entramos numa dança

os olhos perseguem a espuma
a subir a descer
as mãos para o cinzeiro
a cinza a caír seca
puf o fumo a ir para os olhos a piscar
e o outro pálpebra respondendo
levantando o copo bebe
enquanto o outro enche

mas do que eu gosto
é a sincronia dos cigarros a apagarem-se
como isso facilmente se torna num código
uma celebração uma epifania
e só nós sabemos o que isso é



aviso a tempo

quero que venhas
como tu costumas vir
de mansinho de surpresa
entrando pelo quarto
quando eu menos espero (agora

minto-te) não te quero contar
os sustos os sonhos
que me atravessam o corpo ainda dormente
os passos de dança na cama repentinos
ficar sentado pôr-me de pé
tacteando o escuro no limbo de não saber
se durmo ainda quando a mão cai
para fora do estrado
o calor vai apertando a música dos pinheiros
os estalidos os roncos os ciúmes

se apareceres amanhã não te esqueças
de trazer o fato-de-banho
o protector e um chapéu
é que a gravidade por uma pinha
deve ser diferente da de uma maçã



outra forma

era o caminho das pedras quentes
nada mais que isso
um calor pelos tecidos
leves presos nas árvores
havia ainda uma casa de vidros partidos
e a cara reflectia-se num cubismo
por momentos não era um rosto
apenas um não querer estar
quando alguém está à espera
deixar os mortos em paz
tocar nos que ficaram
é somente outra forma de lembrar



do solitário aranhiço que poderei ser eu no bidé na casa-de-
banho da casa dos meus pais em sesimbra


solitário o aranhiço passeia-se pelo bidé
lá vai comendo umas melgas
apenas tem medo dos banhos checos
(que o não são)
e uma ou outra pinga de urina
masculamente perdida em abanicos
não esquecer
mais de três é punheta
(assim seja)
uma em nome do pai duas em nome do filho três
coitadinho do aranhiço
nunca uma gota de orvalho lhe pesou tanto na teia
ele
tão só
ele está à espera
tecendo a trama com livros
e pacientemente escutando a conversa dos outros



despedida do verão no meu pátio

passar a manhã
deixá-la passar com chuva
é isto o que eu faço
retiro as folhas que se prendem no gargalo
procurando palavras ou um poema
que não tenha lido
trazer o fogo para dentro de casa

deixo o teu corpo pacífico dentro dos lençóis
o ar quente do quarto trocado por umas folhas
e a cozinha os gatos na roupa suja
à espera de uma festa ou que amasse
um maço de tabaco para brincadeiras predadoras
estou cansado da minha inveja
das poucas palavras que possuo
do esforço que dispenso para uma única palavra

distraio-me com a rotina engano a retina
preparo o leite o café o cigarro
lavo a cara
demoro-me no espelho
depois o alívio da sanita com mais um cigarro
e um livro de poemas
espero que acordes que te venhas lavar assim
de costas desenhando as nádegas no reflexo
põe música que aclare o dia
as nuvens as rosas que brotam no quintal
que desafogue o cacto cabeludo
quand on n’a que l’amour que fazer
se partes para a cidade

se nenhuma palavra passa
se me fico
caneta-na-mão-lágrima-de-jacaré
não me chegando o apetite
os pequenos segredos a crédito
o chão a cama as mãos abertas
o cheiro do caril do jantar de ontem
não tardes não esperes pelo sol
o verão demasiado longo de fogo
chegaram outras cores a água

ele disse que roda ao longe o outono
não sabendo o que é o outono
porém o meu entendimento é menor ainda
se a chuva não cessar
se o frio entrar em cada bafo
se depois de um verão de meio ano
vier uma tempestade
e as árvores se arrepiarem e evitarem a mudança
será então um outono transfigurado

na escamação de uma mesa velha de café
assisti à criação do mundo
pangeia destroçada tudo separado
consegui conceber a beleza disso
os movimentos internos lentíssimos
em ondas mínimas
mas e a solidão da separação
esperar que passe a tarde
deixá-la passar até
a tua chegada perto da noite
vamos dançar



tinha qualquer coisa para te dizer


ando à procura de esquinas que nos espantem
coisas que se apreciem no instante
sempre renovado do cruzar dos corpos
estranhos espaços espontâneos
paredes caiadas de sombras
uma boa surpresa noticiada no jornal será demais
nenhuma revelação nos surge ao cortar uma maçã
nada resta para amanhã
nem mesmo escrevendo estas palavras para leres
serão outras e de outros as que ficarão na minha boca

não resisto a ler poemas em voz alta
mesmo sentado nos passeios da praça do giraldo
revejo de olhos fechados
todas as cartas que escrevi a ti e que ainda não enviei
espero que pares no próximo sinal vermelho
corre a janela transpirada ou dá-me um momento
debaixo do teu guarda-chuva
calmos encontramo-nos já perto do fim do verão
não te quero assustar
podemos despedir-nos das roupas
das mãos mal apertadas no espaço público
e aos poucos e poucos não fazer nada
olhar bem o outro nos olhos

sabes que não choro
por dá cá aquela palha
e muito menos falo
enrola-se-me a língua
vejo o chão e sigo caminho
a conversa fica para sempre para depois



espero-te na fonte não tardes


os pombos com a fome e as pulgas do costume
as pessoas no sol da fonte
lá em baixo a praça
a chuva prevista e recusada
e as livrarias mal habitadas
vens na hora certa pelo templo
descendo a rua das lembranças
postais louças gorros meias bancos de madeira e pele
e eu espero-te junto a todos como de costume na fonte
temos tido demasiados desencontros desentendimentos
contratempos sei que temos dez ou mais anos
ainda pela frente só que prefiro não falar
porque me dói a barriga da conversa que necessitas ter
outra maneira de dizer que a sinceridade
não é fácil mesmo para quem não faz uso da mentira
por hábito monástico ou para jogo de palavras
repara que nem a barba agora me esconde a cara
mais despido só se me deixares
preparar um prato quente
desenrolar a cambalhota e aquecer-te
caminhar ao teu lado vendo o teu perfil
encontrar o ponto onde irá nascer a próxima ruga
onde se vai marcar a próxima
memória o desgosto a incerteza
tudo isso e depois abrir-te a cama
enrolar-me aos teus pés para que me pises a garganta
ou me ates aos lençóis que me deixe de merdas
e de ser criança quando se trata de uma relação
vá q.b. (tu dixit)




salvo por um coração de lata


depois da opinião da cruz que joga tudo
veio então o passeio desinteressado
e a espera da resposta lá para o fim da noite
há sempre muita coisa para fazer
após uma brutal decisão
quem dará a cara quem me representará fora de mim
a realidade inclinada numa mão e o cigarro
a ser apagado num caixote do lixo
ao lado de um coração
fiquei-me por ali à boca do metro
saída para a rua do crucifixo e do ouro
domingo sem sol e com pouca esperança de melhoras
quem afinal perde um coração mesmo de bronze
quem à noite o irá recolher num bolso e
levá-lo para longe guardá-lo dar-lhe vida
e aquecê-lo trazê-lo ao pescoço ou na boca
abri-lo como a um figo maduro
escondê-lo como a um segredo
não o trouxe
paguei o bilhete
ofereci-lhe um último olhar que não me largou a esse coração
de bronze até estas palavras ficarem escritas



se nos gostamos porque discutimos

vamos não discutir
pelo menos hoje não
pouco ganhamos escondendo o amor
numa qualquer fossa do nosso corpo
ou no espaço que dista
uma boca à outra

antes vamos roubar a flauta do amolador
que afia as palavras
deixar um chocolate adocicar a língua
fumar um cigarro a meias
abrir o livro e experimentar
uma outra posição que a imaginação ainda não sentiu

talvez aí no toque no ritmo
os músculos digam os argumentos certos em nosso favor
mas vamos não discutir
rareia-me já a pele à volta dos dedos
há melhores noites brancas
por exemplo no escuro a dos teus dentes…

poderia ter dito tudo isto antes de te teres ido deitar
ao contrário ficou aqui uma vez mais
tudo por dizer

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