terça-feira, 2 de setembro de 2025

breve carta ii

perdi-me em sonhos
e não mais me encontrei

quis a poesia a filosofia o teatro-dança
ficou-me o silêncio a pedra um cadáver vazio

queimei pontes e um ramo de oliveira
caía no vazio de uma pomba morta

os laços que teci do meu coração pendem esmorecidos
dos pilares da minha galeria para o meu pescoço

estou pronto murmuro cada noite e cada dia
os meus filhos concedem-me a redenção

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

babelsbergstrand

fazer um mundo na margem
do rio à sombra do salgueiro
chorão         dentro dessas águas
os corpos são gritos que vêm
enfurecer-nos         quando entramos
os pés cortam-se com a sílica da morte
essa cruel musa que na vida
até mesmo o amor corrompe
e o idílio decai com a intromissão
do que vem de fora

repara como nesta amena tarde somos
incapazes de uma palavra de ternura
sequer um indício luminoso
de compreensão
não são assim criados os fantasmas
um rasto de um raro momento delével
no fluir da próxima onda que desmaia
no rosto desertado pelo outro

amámo-nos
concedo
duvido porém que nos tenhamos conhecido
e já não assentam nesta pele
os papéis que jogamos

o rio corre         o mundo vai
a caminho da ruína

sábado, 9 de agosto de 2025

uma canção de amor

não sei quanto tempo ainda temos
abraço-te antes que te encontre
o aço e o fogo alheado
de quem nos olha e recrimina
não sei quanto tempo

deixa que me assombre
debaixo da tua coroa 
comovendo-me pela tua
imaginação de águas livres
guiada pela mão do vento

mergulhado no esquecimento
de que o tédio alguma vez existiu
e o inverno que me trucida sempre
tem de voltar         deixa-me 
relembrar quem sonhei vir a ser

para ti que importância tem
o tempo que medimos para nos matar
a pressa de engolir o que nos dão
eu sei tua é outra
a dimensão de pertença a este mundo

mas incapaz de fugires
ao horror que varre
a carne da paisagem
permite que te abrace
e num suave murmúrio
te declare o imenso
amor que te tenho

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

pudesse a mão escrever

pudesse a mão escrever de dentro
da sua solidão apaziguada pelas coisas
a memória do teu corpo
mas a tragédia acontece
movida por razões abomináveis
um pedaço de terra um nome para
o inominável vazio que mora no coração
o desejo inconsolado de ser
reconhecido por uma mãe
um pai um animal
o silêncio de um poema

acontece a tragédia
há o dilúvio de sangue lágrimas e tinta
a morte soterrada pelas cinzas
e o pó e as mãos
inúteis esquecidas
sobre as folhas brancas de um caderno
cobrindo depois o rosto devastado pelo vento
o horror e o nojo de se pertencer
ao grande projecto falido
desta irrepetível criação

pudessem as mãos escrever
recomeçar como fruto de uma ficção
e descobrir a inclinação da verdade
o sentimento que floria no olhar
da minha cadela quando visitava o meu
o do meu filho de cinco meses a observar
o movimento das copas fartas 
e o voo dos corvos à janela
amoroso e sereno espanto que me faria
esquecer esquecer esquecer

o que o vivido faz pesar
no seu modo assombroso
assaltando-me como um predador
saído das sombras
e depois entregando-me
vulnerável à morte lenta e tortuosa
de um eu cancerígeno que revolve
a cada odor lembranças
de quando era inteiro

a mão não agarra o tempo a cavalgar
rápido para a sua tragédia

quarta-feira, 9 de julho de 2025

A sair pela Companhia das Ilhas: O silêncio num campo cantado pelo vento




 

O silêncio num campo cantado pelo vento
Fernando Machado Silva

"(...) conhecemos o pó e a cinza
do teu nome e sonhos

mas não nos conhecemos mais
o cansaço deixa-nos cegos"

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terça-feira, 1 de julho de 2025

solilóquio

esquecemos o bom gosto
dos lábios e da língua

a eminência do tempo
abraça-nos com
a iminência da morte

na hora de ir dormir
já ninguém te chama
para entrar na noite

quinta-feira, 26 de junho de 2025

o cansaço dos dias

o cansaço dos dias
entrega-me ao estupor
como um carneiro à imolação
de olhar imerso em boçalidade
reservo-me à escuridão e aos seus segredos

pardais bebendo das poças      a respiração calma
do meu filho junto ao meu peito
o jogo de luz e sombra
por entre as tílias         o inapreendido e
privado que a vida ainda consente
na sua resistência 
                      
                              instantes que redimem
e consolam
desviam do precipício o passo
e o olhar
solicitam que me erga
contra a bruta e estúpida tristeza

mas ouço quem diga
é já pouco
o que te sobra
vem aí a noite
dou-te uma faca
para o sorriso
e para o riso uma voz
que não aceda 
a falsidade

talvez da ruína se possa estender
uma ponte que te traga ao meu coração

domingo, 15 de junho de 2025

Onde estou onde estás

onde estou
onde estás        as coisas
que tu dizes entredentes
são ondas nas paredes
de uma gruta no litoral         as mãos tiveram
o pressentimento da sombra
no teu coração         uma vez fechadas
nem a sinceridade de um a- 
deus podem conceber

quinta-feira, 5 de junho de 2025

não me privem

não me privem da minha tristeza
nestes tempos de sorrisos sombrios
não sou eu quem está
doente        que de outro modo
posso navegar este deserto
de imagens e máscaras vazias
confundido pela expressão
mais íntima de uma vida

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Retrato de uma década alemã

humilhado ofendido batido cuspido mal-tratado abandonado ridicularizado denegrido desvalorizado esbofeteado usado abusado esquecido gritado silenciado proibido 

por ti
por mim

mas se
num instante declaro 
abrir a porta para outro
horizonte
sou acusado de deixar
as duas vidas criadas
para uma história sem pai

domingo, 18 de maio de 2025

(poema a partir de uma página de beckett)

é sábado
selvaticamente
inscrito na paisagem

nós não estávamos aqui
mas
eu posso preocupar-me
de tempos a tempos
com o horror

eu vou sonhar

quem sou eu para te contar os meus pesadelos privados

eu não suporto
a nossa separação

tu não pensavas na beleza do caminho
não te acalmaria parar

vai

sábado, 26 de abril de 2025

um adeus à serra

as manhãs vinham com ela

só posso assim descrever como a luz
do dia se abeirava do meu rosto
num bafo morno com a doçura
do seu focinho negro e
do seu olhar castanho
inclinados sobre mim

o seu amor
não há outro modo
de se dizer o seu
amor
da ponta da sua cauda ao seu olhar
vibrava e abanava com delicadeza

as manhãs vinham docemente de veludo escuro

sinto falta dessas manhãs negras
hoje o sol quebra o horizonte
sem o esplendor do seu beijo
a manhã escorre pelo soalho por imitação

onde está a graciosidade do salto para o sofá 
a pressa sôfrega de nos guiar
por todos os caminhos
e os da nossa casa

o ranger da cama de verga soa
à sua ausência que entra
pelos nossos corações adentro

memória e ausência compõem
a triste música dos nossos dias
e eu quero-me surdo
prefiro o esquecimento
para que não me visite
a dor

eu não quero saber das vítimas de guerras
é já tempo de parar com a idiotice
eu não quero saber
ela morreu             ela que tudo desculpou
até quando me ocupava com as ninharias da vida
e não a via estando ao meu lado
desculpou até ao último suspiro
ela morreu só e os meus braços ficaram no limiar de a ter junto a mim
ela morreu só e não pude mentir
e dizer que tudo estava bem
até já porque havia a esperança
e não a posso mais cheirar

ela morreu só e eu acompanho-a
até ao meu instante
imerso na solidão

domingo, 16 de março de 2025

golem

supõe mais que a literatura
uma palavra te bastasse
para te trazer à vida         cantarias
a angústia das flores
nos campos         o horror pânico
no olhar dos animais nascidos
para o extermínio         ou ficarias
como sempre enredado
nas tramas lamurientas do teu ego

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

ninguém fala da solidão de um pai

ninguém fala
da solidão de um pai
da sua transfiguração
pelas mãos de uma mulher
em monstro
do seu crescente sentimento
de insignificância
de nada disso
é falado

não há fogo a sair da sua boca
e tanto arde o seu peito e o mar
ruge e urge à garganta
tantas vezes ancilosada pela dor
do estreito que vai do coração ao pensamento

as palavras são pedras não medem
distâncias traçam trilhos agrestes
incomensuráveis onde a pouco
e pouco o pai encontra o seu conforto

disso ninguém
fala         da solidão e do silêncio 
que se alojam         não disso
ninguém fala         de como saiu o amante
no romper das águas
de como caiu a primeira neve depois
o gelo depois veio
a chuva quando já manhã         entrou
à noite o inimigo no chão
junto aos cães         sê bem-vindo
pai
acomoda-te ao teu papel

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

toda a beleza deve morrer

quem disse
toda a beleza deve morrer
não conheceu o horror de uma pele
intocada pelo tempo         nunca andou 
descalço sobre gravilha ao rubro
ou provou o baque da pedra
agreste de um beijo roubado
não foi o peixe apanhado pelo canto
do olho surpreso pelo que persiste

quem disse toda a beleza deve morrer
deceparia as mãos
do meu filho
de três anos
não deixaria entrar o vento pelos cabelos
não veria a primeira aurora de um coração
partido         não veria não de todo o retorno
de vida onde jamais dela se espera
ou o brilho de bonança num rosto
devastado por lágrimas

quem disse toda a beleza

deve morrer

domingo, 19 de janeiro de 2025

Agita as águas, rompe o silêncio (novo livro já à venda)

mais informações aqui 

 nota da badana: 

A poesia em prosa de Fernando Machado Silva consagra-se novamente em duas obras complementares, que confirmam a assinatura perene e simultaneamente fluída do autor. Em sua nova obra "Agita as Águas. Rompe o Silêncio", o autor traz-nos dois livros, duas narrativas que entrelaçam ficção e sentimento. Os sujeitos poéticos apresentam-se com familiaridade entre si e com o leitor, através de um jogo de espelhos vibrante e perturbador. No primeiro livro, "Agita as águas, rompe o silêncio: uma carta perdida de Johannes", acessamos uma paisagem de sentidos perdidos na neblina escaldante de um segredo. O leitor pode ser cúmplice ou denunciante diante de um paradoxo filosófico e ético, em uma narrativa de turbilhão, em que os sentimentos afloram e correm feito um rio revolto. No segundo livro inserido na obra, o poeta-prosador conduz-nos por um novo mistério através do olhar observante e de testemunho do sujeito poético em "A quem devemos este deserto que alastra em cada mão: uma novela vedântica", que vicia-nos na espreita de uma porta entreaberta, cujo interior permanece encoberto pelas falas das personagens Jiva, Atman e Jivatman. Nesta obra única, Fernando traz um sentido político e holístico para a linguagem, indissociável da questão ética, com as hesitações, as dúvidas e as fragilidades humanas, em seu ininterrupto diálogo com o eterno.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Scherzo

para dizer a verdade nunca sei
contra todos os indícios
se dançam pela vida ou para a morte
quando se encontram duas borboletas

terça-feira, 27 de agosto de 2024

pedras paus folhas

ele entra pelas águas
do lago cheio de inquietação
da viagem e o indefinido desejo
a pulsar no seu corpo de criança

respiga pelos trilhos
aos fundos de areias
quase brancas
pela passagem do tempo
da secura das ondas
arrepiadas pelo vento

pedras paus folhas

o segredo e mistério que portam
tocam o âmago da beleza e do amor
ao serem oferecidos sem o que esperar

pedras paus folhas
só a mim dirão da sua presença no grande rio
da memória a enlamear-se ditando
a lenta aproximação da morte

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O teu é o primeiro nome

o teu é o primeiro nome
que me vem à boca ainda a aurora
mal pôs os seus dedos róseos
a cintilar o suor da noite        o primeiro

é o teu corpo que me conhece
o terror dos sonhos e o delírio
do coração vígil        chorei

ao ter da verdade a claridade de seres
tu a vida perdida a caminho de nunca
teres existido como a história

o teu nome o teu corpo a tua memória

alguém cria silêncios para nós

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Não damos mais as mãos

não damos mais as mãos
de permeio intrometeu-se um pequeno mundo
os nós que a vida teima em dar

também os lábios gelaram com o deserto
de beijos        movem-se assombrados
com palavras escuras mas rasgam-se
com a luz dos gestos da criança

os olhos refugiaram-se na atenção dos horrores
na displicência de um cansaço difícil de lavar
e trama a impaciência

anoitece entretanto       o outono
entra pela paixão        a secura
pelos campos

e como um aroma esquecido numa gaveta cheia
de linhos acende-se um passado
vem à beira-mar dos corpos
uma onda reencontrar o que nunca à partida esteve  perdido